— Por que você quer saber?
— Pura curiosidade.
Lisbeth Salander refletiu por um bom tempo. Por fim, olhou para ele.
— Eu fiz por um motivo pessoal sobre o qual não estou a fim de falar. Anders Jonassoji meditou sobre a resposta, depois meneou a cabeça, pensativo.
— Certo. Desculpe ter perguntado.
— Quer dar uma olhada nela? Ele pareceu surpreso.
— Quero, por que não?
Ela virou de costas e tirou a camisola pela cabeça. Posicionou-se de modo a que a claridade vinda da janela batesse em suas costas. Ele observou que o dragão cobria boa parte do lado direito das costas. Começava na escapula, na altura do ombro, e acabava numa cauda na parte inferior do quadril. Era lindo, executado pela mão de um profissional. Uma verdadeira obra de arte.
Passados alguns instantes, ela virou a cabeça.
— Satisfeito?
— E muito bonito. Mas deve ter doído à beca.
— E — ela admitiu. — Doeu.
Anders Jonasson deixou o quarto de Lisbeth Salander levemente desconcertado. Estava satisfeito com a recuperação dela. Mas não conseguia entender aquela garota estranha. Não precisava de um mestrado em psicologia para concluir que ela não estava mentalmente muito bem. O modo como ela falava com ele era educado, mas repleto de uma áspera desconfiança. Sabia que ela também era educada com o restante da equipe, porém se fechava como ostra quando a polícia aparecia. Metia-se dentro da carapaça e sempre estabelecia uma distância entre ela e os outros.
A polícia a pusera em prisão cautelar e um procurador pretendia indiciá-la por tentativa de homicídio e golpes e ferimentos agravados. Ele duvidava seriamente que uma garota tão miúda e com uma constituição tão frágil tivesse tido a força física necessária para esse tipo de ato violento, mesmo porque as agressões tinham sido contra homens adultos.
Ele perguntara sobre o dragão principalmente para poder conversar algo mais pessoal com ela. Não estava de fato interessado em saber por que ela se enfeitara daquele jeito exagerado, mas imaginava que se ela optara por marcar seu corpo com uma tatuagem daquele tamanho é porque aquilo tinha para ela bastante importância. Conclusão, era um bom assunto para iniciar uma conversa.
Ele adquirira o hábito de ir vê-la várias vezes por semana. As visitas, na verdade, ficavam fora do seu expediente, e a Dra. Helena Endrin é que era a médica dela. Mas Anders Jonasson era o chefe do serviço de traumatologia e estava extremamente satisfeito com sua própria contribuição na noite em que Lisbeth Salander chegara ao pronto-socorro. Tomara a decisão certa ao optar por extrair a bala e, até onde podia avaliar, ela não tivera seqüelas do ferimento a bala, como lapsos de memória, funções corporais diminuídas ou qualquer outra deficiência. Se a recuperação continuasse assim, ela deixaria o hospital sem mais complicações que uma cicatriz no couro cabeludo. Já quanto à cicatriz formada em sua alma, ele não saberia dizer.
Ao voltar para a sua sala, deparou com um homem de casaco escuro esperando por ele, encostado na parede ao lado da porta. Tinha cabelos emaranhados e uma barba bem-cuidada.
— Doutor Jonasson?
— Sim.
— Bom dia. Meu nome é Peter Teleborian. Sou médico-chefe da clínica psiquiátrica de Sankt Stefan, em Uppsala.
— Sim, estou reconhecendo o senhor.
— Bem, eu gostaria de ter uma conversa particular com o senhor, se tiver um instante livre.
Anders Jonasson destrancou a porta de sua sala.
— O que posso fazer pelo senhor? — perguntou.
— É sobre uma de suas pacientes. Lisbeth Salander. Preciso vê-la.
— Humm. Nesse caso, terá de pedir autorização à procuradora. Ela está sob prisão cautelar, proibida de receber visitas. Todas as visitas também devem ser comunicadas de antemão para a advogada da Salander...
— Sim, sim, eu sei disso. Achei que nós dois pudéssemos dispensar toda essa burocracia. Sou médico, portanto o senhor pode, sem nenhum problema, me dar acesso a ela por motivos médicos.
— Sim, talvez se justifique. Mas não estou vendo a relação.
— Durante vários anos fui o psiquiatra de Lisbeth Salander, quando ela esteve internada na Sankt Stefan, em Uppsala. Eu a acompanhei até ela completar dezoito anos, quando o Tribunal de Instâncias a reconduziu à sociedade, embora sob tutela. Talvez seja bom eu enfatizar que naturalmente me opus a essa decisão. Depois a deixaram sair por aí sem rumo, e aí está o resultado.
— Entendo — disse Anders Jonasson.
— Ainda me sinto bastante responsável por ela e queria ter a oportunidade de avaliar o agravamento de sua condição nesses dez últimos anos.
— Agravamento?
— Comparado a quando ela recebia tratamento especializado na adolescência. Pensei que poderíamos pensar numa solução adequada, cá entre nós, como médicos.
— A propósito, antes que eu me esqueça... O senhor talvez possa me esclarecer um aspecto que não entendi direito, quero dizer, cá entre nós, como médicos. Quando ela deu entrada aqui no Sahlgrenska, pedi um exame clínico extenso. Um colega pediu que eu desse uma olhada na investigação médico-legal relativa a Lisbeth Salander. Que era assinada pelo doutor Jesper H. Lõderman.
— Exato. Eu fui o orientador de Jesper em seu doutorado.
- Entendo. Mas observei que essa investigação médico-legal está extremamente vaga.
— Ah,é?
— Não apresenta nenhum diagnóstico, lembra mais a análise convencional de um paciente que se recusa a falar. Peter Teleborian deu uma risada.
— É, ela não é fácil. Como a investigação demonstrou, ela se negava categoricamente a participar das entrevistas com o Lõderman. Por isso ele viu-se obrigado a se expressar em termos tão vagos. Ele foi muito correto.
— Entendo. Mesmo assim, recomendou que ela fosse internada.
— Com base no passado dela. Temos total experiência sobre a doença dela, que se estende por vários anos.
— Pois então, é isso que não consigo entender direito. Quando ela deu entrada aqui, tentamos conseguir a ficha dela na Sankt Stefan. Mas ainda não foi enviada.
— Sinto muito. E um arquivo considerado sigiloso por decisão do Tribunal de Instâncias.
— Sei. E como é que a gente, aqui no Sahlgrenska, pode dar a ela o tratamento adequado sem termos acesso a esse arquivo? Acontece que, hoje, nós é que somos os médicos responsáveis por ela.
— Tratei da Lisbeth Salander desde que ela tinha doze anos e acho que nenhum médico na Suécia sabe tanto sobre a doença dela quanto eu.
— Que é...?
— Ela sofre de um grave desequilíbrio psíquico. Como o senhor sabe, a psiquiatria não é uma ciência exata. Não gosto de me sentir limitado por um diagnóstico preciso. Mas ela tem alucinações manifestas com traços esquizofrênicos paranóicos muito claros. Acrescente-se a isso períodos maníaco-depressivos, e que ela carece de empatia.
Anders Jonasson perscrutou o Dr. Peter Teleborian durante uns dez segundos antes de fazer um gesto incisivo de mãos.
— Não vou contestar o seu diagnóstico, doutor Teleborian, mas o senhor nunca considerou a possibilidade de um diagnóstico mais simples?
— Como assim?
— A síndrome de Asperger, por exemplo. Claro, eu não a submeti a nenhum exame psiquiátrico, mas, se me perguntassem, minha primeira opinião seria alguma forma de autismo. O que explicaria sua incapacidade em se subjugar às convenções sociais.
— Lamento, mas os pacientes de Asperger não costumam atear fogo nos pais. Acredite, nunca deparei com uma sociopata tão claramente definida.
— O que eu vejo é uma pessoa fechada em si mesma, mas não uma sociopata paranóica.
— Ela é manipuladora ao extremo — disse Peter Teleborian. — Ela se comporta como acha que o senhor gostaria que se comportasse.
Anders Jonasson franziu imperceptivelmente o cenho. Peter Teleborian estava, de repente, contrariando sua própria avaliação de Lisbeth Salander. E se havia uma coisa que ele não percebia nela era a manipulação. Pelo contrário; era uma pessoa que mantinha uma imperturbável distância dos outros e não demonstrava nenhuma emoção. Tentou conciliar o quadro traçado por Teleborian com a idéia que ele próprio formara de Lisbeth Salander.