— O senhor esteve muito pouco com ela, e quando seus ferimentos a condenaram à prostração. Eu assisti às suas crises de violência e ao seu ódio desmedido. Passei anos tentando ajudar Lisbeth Salander. Por isso estou aqui. Proponho uma colaboração entre o Sahlgrenska e a Sankt Stefan.
— Em que tipo de colaboração o senhor está pensando?
— Vocês estão cuidando dos problemas físicos, e estou certo de que ela terá o melhor tratamento possível. Mas estou muito preocupado com o estado psíquico dela, e gostaria de intervir rapidamente. Estou pronto para oferecer todo o auxílio que estiver ao meu alcance.
— Entendo.
— Para começar, preciso ver a Lisbeth para avaliar seu estado.
— Entendo, mas, infelizmente, não posso fazer nada pelo senhor.
— Como assim?
— É como eu disse, ela está detida. Se quiser começar um tratamento psiquiátrico, precisa entrar em contato com a procuradora Jervas, que é quem toma as decisões nesses casos, e isso deve ser feito com a concordância da advogada Annika Giannini. Como se trata de uma avaliação psiquiátrica legal, o senhor precisa ser designado pelo Tribunal de Instâncias.
— Eram justamente esses trâmites burocráticos todos que eu queria evitar.
— É, mas como eu sou o responsável por ela e ela vai comparecer diante de um tribunal num futuro próximo, teremos que justificar todas as medidas que tomarmos. De modo que é necessário seguir os trâmites burocráticos.
— Entendo. Sendo assim, devo informá-lo que o procurador Richard Ekstrõm, de Estocolmo, já solicitou que eu faça uma avaliação psiquiátrica legal na época do julgamento.
— Melhor assim. Quer dizer que o senhor vai obter uma autorização para visita sem que a gente precise contornar o regulamento.
— Mas enquanto tratamos da burocracia, existe o perigo de o estado dela se agravar. Só o que me interessa é a saúde dela.
— A mim também — disse Anders Jonasson. — E, cá entre nós, posso adiantar que não vejo nela o menor sinal de qualquer tipo de doença psíquica. Ela está bastante machucada e passando por um grande estresse. Mas não acredito, de maneira alguma, que seja esquizofrênica ou sofra de fobias paranóicas.
O Dr. Peter Teleborian ainda passou um bom tempo tentando fazer Anders Jonasson mudar de idéia. Quando afinal entendeu que estava perdendo tempo, levantou-se bruscamente e se despediu.
Anders Jonasson demorou-se algum tempo contemplando a cadeira na qual Teleborian estivera sentado. Claro, era comum que outros médicos o procurassem para dar conselhos ou opiniões sobre um tratamento. Mas eram quase sempre pacientes que já tinham um médico responsável por algum tipo de tratamento em curso. Nunca vira nenhum psiquiatra aparecer daquele jeito, feito um óvni, e insistir para ter acesso a uma paciente passando por cima do regulamento, paciente essa que ele, aparentemente, já não tratava havia muitos anos. Depois de alguns instantes, Anders Jonasson consultou o relógio e viu que eram quase sete da noite. Pegou o telefone e ligou para Martina Karlgren, a psicóloga de plantão que o Sahlgrenska oferecia aos pacientes da traumatologia.
— Olá. Imagino que já tenha encerrado seu dia de trabalho. Estou atrapalhando?
— Não se preocupe. Estou em casa, mas não estou fazendo nada de especial.
— São umas dúvidas aqui que eu tenho. Você conversou com a nossa paciente Lisbeth Salander. Poderia me dizer que impressão teve dela?
— Olhe, estive três vezes com ela, propondo uma conversa. Ela recusou, gentil, mas firmemente.
— Que impressão ela lhe passa?
— Em que sentido?
— Martina, eu sei que você não é psiquiatra, mas é uma pessoa experiente e sensata. Que impressão ela lhe passa?
Martina Karlgren hesitou um instante.
— Não sei bem o que dizer. Estive com ela duas vezes pouco depois que foi internada. Estava tão mal que não tivemos de fato nenhum contato. Depois disso, fiz uma visita há mais ou menos uma semana, a pedido da Helena Endrin.
— Por que a Helena pediu que você falasse com ela?
— A Lisbeth Salander está em recuperação. Passa a maior parte do tempo deitada, olhando para o teto. A Endrin queria que eu desse uma olhada nela.
— E como foi?
— Eu me apresentei. Conversamos alguns minutos. Perguntei como ela estava e se sentia necessidade de ter alguém para conversar. Ela disse que não. Perguntei se eu podia ajudar em alguma coisa. Ela pediu que eu lhe conseguisse um maço de cigarros.
— Ela estava irritada ou hostil? Martina Karlgren refletiu um instante.
— Não, não dá para dizer isso. Estava calma, mas mantinha uma distância enorme. Levei seu pedido para eu conseguir cigarros mais como uma brincadeira do que como algo sério. Perguntei se ela queria ler alguma coisa, se eu podia levar uns livros. De início, ela não quis, mas depois perguntou se eu tinha alguma revista científica sobre genética e pesquisas sobre o cérebro.
— Sobre o quê?
— Genética.
— Genética?
— É. Eu disse que havia uns livros mais genéricos sobre o assunto na nossa biblioteca. Ela não se interessou. Disse que já tinha lido alguns livros a respeito e citou algumas obras mais básicas das quais eu nunca tinha ouvido falar. Ou seja, ela estava mais interessada na pesquisa científica nessa área.
— Ah, é? — disse Anders Jonasson, estupefato.
— Eu disse que decerto não haveria livros tão especializados na biblioteca do hospital, que havia mais Philip Marlowe do que literatura científica, mas que eu ia tentar conseguir alguma coisa para ela.
— E conseguiu?
— Peguei emprestados uns exemplares da Nature e do New England Journal of Medicine. Ela ficou satisfeita e me agradeceu pelo esforço.
— Mas essas revistas são um bocado áridas, trazem principalmente artigos científicos e pesquisa pura.
— Ela está lendo com muito interesse. Anders Jonasson ficou um instante sem voz.
— Como você avalia o estado psíquico dela?
— Ela é fechada. Não conversou nada pessoal comigo.
— Você tem a impressão de que ela é psiquicamente perturbada, maníaco-depressiva ou paranóica?
— Não, de jeito nenhum. Nesse caso, eu teria dado o alerta. Ela é especial, sem dúvida, tem problemas sérios e está passando por um estresse enorme. Mas é calma e objetiva, e parece capaz de administrar a situação.
— Ótimo.
— Por que está perguntando? Aconteceu alguma coisa?
— Não, nada. É só que eu não consigo formar uma imagem precisa sobre ela.
10. SÁBADO - 7 DE MAIO – QUINTA-FEIRA - 12 DE MAIO
Mikael Blomkvist largou a pasta com os resultados da pesquisa enviada pelo freelancer Daniel Olofsson, de Gõteborg. Olhou, pensativo, pela janela e contemplou o fluxo de transeuntes na Gõtgatan. Gostava demais da localização da Míllennium. A Gõtgatan era cheia de vida a qualquer hora do dia ou da noite, e quando se sentava diante da janela nunca se sentia realmente sozinho ou isolado.
Estava estressado, embora não estivesse às voltas com nenhuma urgência. Continuara trabalhando obstinadamente nos textos com que pretendia montar a edição de verão da Millennium, mas acabara percebendo que seu material era tão vasto que nem um número temático seria suficiente. Diante outra vez da mesma situação em que se vira no caso Wennerstrõm, decidira publicar um livro com aquelas informações. Já tinha material suficiente para mais de cento e cinqüenta páginas e calculava que o livro todo teria entre trezentas e trezentas e cinqüenta páginas.
A parte mais simples estava pronta. Descrevera os assassinatos de Dag Svensson e Mia Bergman, contando como acabara sendo ele quem descobrira os corpos. Explicara por que tinham suspeitado de Lisbeth Salander. Reservou um capítulo inteiro de trinta e sete páginas para detonar violentamente de um lado, tudo o que a mídia havia escrito sobre Lisbeth Salander e, de outro, o procurador Richard Ekstrõm — e indiretamente toda a investigação conduzida pela polícia. Depois de algumas ponderações, suavizara a crítica a Bublanski e seus colegas. Isso depois de assistir a um vídeo de uma entrevista coletiva de Ekstrõm que revelava de maneira evidente como Bublanski estava pouquíssimo à vontade e obviamente descontente com as conclusões precipitadas de Ekstrõm.