— Meu caro Mikael, você parece preocupado. O que o traz aqui? — Perguntou Kurdo Baksi por fim.
— Você poderia desligar o celular por uns cinco minutos para a gente Poder falar em paz?
Kurdo desligou o celular.
—- É o seguinte... preciso de um favor. Um favor importante, e ainda por cima tem que ser rápido e não pode ser comentado fora desta sala.
— Diga.
— Em 1989, um refugiado curdo chamado Idris Ghidi chegou à Suécia vindo do Iraque. Quando ameaçaram expulsá-lo, a sua família, Kurdo, o ajudou, e é graças a ela que ele acabou conseguindo um visto de permanência. Não sei se quem o ajudou foi seu pai ou alguma outra pessoa da família.
— Foi meu tio, Mahmut Baksi, quem ajudou o Idris Ghidi. Eu conheço o Idris. O que houve com ele?
— Ele agora trabalha em Gõteborg. Preciso da sua ajuda para um serviço simples. Eu pago.
— Que tipo de serviço?
— Você confia em mim, Kurdo?
— Mas é claro. Sempre fomos amigos.
— Trata-se de um serviço especial. Muito especial. Não quero dizer em que ele consiste, mas garanto a você que não é nada ilegal e que não vai criar nenhum problema para você nem para o Idris Ghidi.
Kurdo Baksi fitou Mikael Blomkvist atentamente.
— Entendo. Mas você não quer me dizer do que se trata.
— Quanto menos você souber, melhor. Mas preciso que você me ponha em contato com o Idris, para que ele ouça o que eu tenho a dizer.
Kurdo refletiu um instante. Então foi até sua mesa e abriu uma caderneta. Procurou um pouco até encontrar o número do telefone de Idris Ghidi. Pegou o fone. A conversa se deu em curdo. Pela expressão de Kurdo, Mikael percebeu que ela começou com as frases e os preâmbulos rituais de gentileza. Depois, ficou sério e explicou o que queria. Passado um momento, virou-se para Mikael.
— Quando você quer se encontrar com ele?
— Na sexta à tarde, se possível. Pergunte se posso ir à casa dele. Kurdo falou mais um pouco e encerrou a ligação.
— O Idris Ghidi mora em Angered — disse Kurdo Baksi. — Você tem o endereço?
Mikael fez que sim com a cabeça.
— Ele vai te esperar em casa, na sexta-feira, às cinco da tarde.
— Obrigado, Kurdo — disse Mikael.
— Ele trabalha no Hospital Sahlgrenska, na limpeza — disse Kurdo Baksi.
- Eu sei — disse Mikael.
- Soube pelos jornais que você está envolvido nesse caso Salander.
___ É verdade.
— Andaram atirando nela. .— Isso mesmo.
— É interessante que ela esteja justamente no Sahlgrenska.
— Isso também é verdade.
Kurdo Baksi também não tinha nascido ontem.
Percebeu que Blomkvist tramava algo suspeito, era a especialidade dele. Conhecia Mikael desde os anos 1980. Nunca tinham sido muito próximos, mas Mikael sempre atendera quando Kurdo lhe pedira algum favor. Nos últimos anos, tinha acontecido de eles tomarem uma ou outra cerveja juntos, quando se cruzavam numa festa ou num bar.
— Será que eu não estou me envolvendo em alguma coisa que eu deveria saber? — perguntou Kurdo.
— Você não está se envolvendo em nada. Seu papel é apenas fazer o favor de me apresentar um conhecido seu. E repito... o que eu vou pedir para o Idris Ghidi fazer não é ilegal.
Kurdo assentiu com a cabeça. Esta garantia lhe bastava. Mikael se levantou.
— Fico te devendo essa.
— Uma vez eu, outra você... a gente está sempre se devendo algum favor — disse Kurdo Baksi.
Henry Cortez pôs o fone no gancho e tamborilou tão ruidosamente os dedos na beira da mesa que Monika Nilsson, irritada, ergueu uma sobrancelha e lançou-lhe um olhar mortífero. Notou que ele estava profundamente imerso em seus pensamentos. Estava com os nervos à flor da pele e resolveu não descontar em Henry.
Monika Nilsson sabia que Blomkvist andava de segredos com Cortez, Malu Eriksson e Christer Malm em razão do caso Salander, enquanto esperavam que ela e Lottie Karim fizessem o grosso do trabalho para o próximo numero de uma revista que, na verdade, estava sem direção desde a saída de
Erika Berger. Não havia o que criticar em Malu, mas ela não tinha nem a experiência nem o peso de Erika Berger. E Cortez não passava de um garoto.
A irritação de Monika Nilsson não vinha de ela se sentir excluída ou querer estar no lugar deles — era, aliás, a última coisa que ela iria querer. Seu trabalho consistia em observar o governo, o Parlamento e o funcionalismo pela Millennium. Gostava desse trabalho e conhecia todos os seus meandros. Também estava envolvida em muitas outras tarefas, entre outras coisas escrever uma coluna semanal para um jornal sindical e um trabalho voluntário para a Anistia Internacional. Isso era inconciliável com o cargo de redatora--chefe da Millennium, que a levaria a trabalhar no mínimo doze horas por dia, além de sacrificar fins de semana e feriados.
Tinha, porém, a impressão de que algo mudara na Millennium. Não estava reconhecendo a revista. E não conseguia detectar o que soava errado.
Como sempre, Mikael Blomkvist vinha tendo um comportamento irresponsável, sumindo em suas viagens misteriosas e entrando e saindo quando bem entendesse. Claro, ele era co-proprietário da Millennium e tinha o direito de decidir o que queria fazer, mas era legítimo exigir dele um mínimo de responsabilidade.
Christer Malm era o outro coproprietário, mas não ajudava mais do que quando estava de férias. Era, sem dúvida alguma, muito talentoso e já assumira o posto de redator-chefe quando Erika estava de licença ou ocupada, porém de modo geral só organizava o que já havia sido decidido pelos outros. Era brilhante em tudo que se relacionava com criação gráfica e diagramação, mas completamente inútil para planejar uma revista.
Monika Nilsson franziu o cenho.
Não, estava sendo injusta. O que a irritava era alguma coisa ter acontecido na redação. Mikael trabalhava com Malu e Henry, e os demais ficavam, de certa forma, excluídos. Eles tinham formado uma panelinha e se trancavam na sala de Erika... de Malu, e saíam de lá sem dizer uma palavra. Sob a direção de Erika, tudo era coletivo. Monika não entendia o que acontecera, mas entendia que estava sendo deixada de lado.
Mikael estava trabalhando no caso Salander e não deixava escapar uma palavra sobre o assunto. Isso, porém, não era novidade. Ele tampouco dissera alguma coisa na época do caso Wennerstrõm — a própria Erika não soubera de nada —, mas desta vez tinha Henry e Malu como confidentes.
Em suma, Monika estava irritada. Estava precjsando de férias. Precisando de distância. Viu Henry Cortez vestir seu casaco de veludo cotelê.
— Vou dar uma volta — disse ele. — Você pode dizer para a Malu que eu vou ficar fora por umas duas horas?
— O que houve?
— Acho que talvez eu tenha descoberto alguma coisa. Um superfuro. Sobre vasos sanitários. Preciso conferir uns detalhes, mas, se estiver tudo certo, vamos ter um texto legal para o número de junho.
— Vasos sanitários? — espantou-se Monika Nilsson, enquanto ele saía.
Erika Berger cerrou os dentes e largou devagar o texto sobre o futuro julgamento de Lisbeth Salander. Não era longo, duas colunas, destinado à página 5 com as atualidades nacionais. Eram três e meia da tarde de uma quinta-feira. Fazia doze dias que ela estava trabalhando no SMP. Pegou o telefone e ligou para o chefe de Atualidades, Lukas Holm.
— Olá, é a Berger. Você poderia procurar o jornalista Johannes Frisk e vir com ele agora mesmo até a minha sala, por favor?
Ela desligou e esperou pacientemente até Holm chegar ao aquário, seguido por Johannes Frisk. Erika olhou o relógio.
— Vinte e dois — disse ela.
— O quê? — disse Holm.
— Vinte e dois minutos. Você precisou de vinte e dois minutos para se levantar de sua mesa, percorrer os quinze metros que te separam da mesa de Johannes Frisk e se dignar a vir até aqui.