— Mas a Rússia também se tornou uma democracia, não é? Quero dizer, se tudo isso aconteceu no tempo dos comunistas, então...
— Que ilusão! Estamos falando de gente que fez espionagem contra a Rússia — nenhum regime do mundo aceitaria uma coisa dessas, mesmo que tenha acontecido há vários anos. E muitas dessas fontes ainda estão em atividade...
Esses agentes não existiam, mas isso o procurador Ekstrôm não tinha como saber. Era obrigado a aceitar o que Nystrõm dizia. E, contra a sua vontade, sentia-se lisonjeado por partilhar, daquele modo informal, informações consideradas segredo de segurança nacional. Estava vagamente surpreso que a Segurança sueca tivesse conseguido penetrar na defesa russa até onde Nystrõm dava a entender e entendia perfeitamente que aquele tipo de informação sem dúvida não podia ser divulgado.
— Quando me encarregaram de entrar em contato com o senhor, realizamos uma avaliação minuciosa a seu respeito — disse Nystrõm.
Para seduzir uma pessoa, sempre é preciso identificar seus pontos fracos. O ponto fraco do procurador Ekstrõm era a convicção que ele tinha de sua própria importância, e, como todo mundo, ele apreciava a lisonja. O objetivo era ele pensar que havia sido escolhido.
— E constatamos que o senhor goza da maior confiança dentro da polícia... e também, é claro, nas esferas governamentais — acrescentou Nystrõm.
Ekstrõm se sentia no céu. Que pessoas não mencionadas das esferas governamentais confiassem nele era uma informação que indicava, sem ser claramente dito, que ele poderia contar com alguma gratidão se soubesse jogar suas cartas com habilidade. Era uma boa perspectiva para a sua carreira.
— Entendo... e o que vocês desejam?
— Falando de maneira simples, minha missão é lhe fornecer elementos da forma mais discreta possível. O senhor entende, claro, a que ponto essa história é incrivelmente complicada. Por um lado, há um inquérito preliminar dentro das normas, pelo qual o senhor é o responsável. Ninguém... nem 0 governo, nem a Segurança, nem quem quer que seja pode interferir na maneira como o senhor conduz esse inquérito. O seu trabalho consiste em descobrir a verdade e indiciar os culpados. E uma das funções mais importantes que existem num Estado de direito. Ekstrõm assentiu com a cabeça.
— Por outro lado, seria uma catástrofe nacional de proporções quase inconcebíveis se toda a verdade sobre o Zalachenko fosse revelada.
— Qual é, então, o objetivo de sua visita?
— Primeiro, cabe a mim chamar sua atenção para essa situação delicada. Não creio que a Suécia tenha estado numa situação mais vulnerável desde a Segunda Guerra Mundial. Pode-se dizer que o destino do país está, em certa medida, nas suas mãos.
— Quem é o seu chefe?
— Lamento, mas não posso revelar o nome das pessoas que estão trabalhando nesse caso. Mas posso lhe garantir que as minhas instruções vêm do escalão mais alto que se possa imaginar.
Meu Deus. Ele está agindo por ordem do governo. Mas isso não pode ser dito, pois isso desencadearia um desastre político.
Nystrõm viu que Ekstrõm estava mordendo a isca.
— Em compensação, o que posso fazer é ajudá-lo fornecendo informações. Estou autorizado a lhe repassar, na medida em que me parecer pertinente, um material considerado dos mais secretos que temos no país.
— Entendo.
— Isso quer dizer que, quando o senhor tiver perguntas a fazer, quaisquer que sejam, deverá dirigir-se a mim. Não deverá falar com mais ninguém da Segurança, só comigo. Minha missão é guiá-lo nesse labirinto, e se houver qualquer risco de um choque de interesses, vamos ter de encontrar juntos uma solução.
— Entendo. Nesse caso, permita-me dizer que fico muito grato por o senhor e seus colegas estarem dispostos a facilitar as coisas para mim, como estão fazendo.
— Fazemos questão que as vias jurídicas sigam seu curso normal, embora a situação seja delicada.
— Melhor assim. Posso garantir que serei de uma discrição absoluta. Não é a primeira vez que trabalho com dados sigilosos.
— Sim, estamos informados.
Ekstrõm fizera uma dúzia de perguntas, que Nystrüm anotara meticulosamente para tentar lhe trazer mais tarde respostas tão completas quanto possível. Durante uma terceira visita, Ekstrõm teria a resposta para várias dessas perguntas. A mais importante era o que havia de verídico no relatório de Bjõrckdel991.
— Isso é um problema para nós — disse Nystrõm. Ele parecia preocupado.
— Talvez eu deva explicar, antes de mais nada, que desde que esse relatório veio à tona temos um grupo de análise trabalhando quase vinte e quatro horas por dia para esclarecer exatamente o que aconteceu. E já estamos, afinal, chegando a algumas conclusões. São conclusões bastante desagradáveis.
— Posso entender, já que o relatório prova que a Sapo e o psiquiatra Peter Teleborian conspiraram para mandar internar Lisbeth Salander num hospital psiquiátrico.
— Antes tivesse sido assim — disse Nystrõm com um sorrisinho.
— O que o senhor quer dizer?
— Bem, se tivesse sido assim, tudo seria muito simples. Teria havido uma infração à lei que poderia resultar em indiciamento. O problema é que o relatório não corresponde ao que está nos nossos arquivos.
— Como assim?
Nystrõm pegou uma pasta azul e a abriu.
— O que eu tenho aqui é o verdadeiro relatório que Gunnar Bjõrck redigiu em 1991. Temos também nos nossos arquivos os originais da correspondência entre ele e o Teleborian. O problema é que as duas versões não batem.
— Me explique melhor.
— É um tremendo azar o Bjõrck ter se enforcado. Supõe-se que ele tenha feito isso por causa das revelações sobre seus desvios sexuais, que iam ser publicadas em breve. A Millennium pretendia denunciá-lo. Eles o levaram a tal desespero que ele preferiu acabar com a própria vida.
— Sei...
— O relatório original é uma investigação sobre a tentativa de Lisbeth Salander de matar o pai, Alexander Zalachenko, com um coquetel Molotov.
As trinta primeiras páginas que o Blomkvist descobriu batem com o original. Essas páginas não trazem nenhuma informação sensacional. É só a partir da página 33, quando o Bjórck tira suas conclusões e emite um parecer, que aparece a divergência.
— De que jeito?
— Na versão original, o Bjõrck faz cinco recomendações muito claras. Não vou esconder que ele propõe que o caso Zalachenko desapareça dos noticiários. O Bjõrck sugere que a recuperação de Zalachenko — que ficou gravemente queimado — fosse feita no exterior. Coisas desse tipo. Sugere também que seja oferecido a Lisbeth Salander o melhor tratamento psiquiátrico.
— Ah, é?
— O problema é que um bocado de frases foram alteradas, de maneira bem sutil. Na página 34, há um trecho em que o Bjõrck parece sugerir que a Salander seja declarada psicótica, de modo a desacreditá-la caso alguém começasse a fazer perguntas sobre o Zalachenko.
— E essa sugestão não consta no relatório original?
— Exatamente. O Gunnar Bjõrck jamais sugeriu nada do gênero. Sem contar que teria sido contra a lei. Ele sugeriu que ela recebesse o tratamento de que de fato precisava. Na cópia do Blomkvist, isso tudo vira uma maquinação.
— Posso ler o original?
— Pois não. Mas preciso levá-lo comigo quando sair. E, antes que o leia, permita-me chamar sua atenção para o anexo, a correspondência que posteriormente se estabeleceu entre o Bjõrck e o Teleborian. Foi quase que toda falsificada. E nesse caso não se trata de alterações sutis, e sim de falsificações grosseiras.
— Falsificações?
— Acho que a palavra é essa. O original mostra que Peter Teleborian foi indicado pelo Tribunal de Instâncias para fazer uma avaliação psiquiátrica legal de Lisbeth Salander. O que não é nada estranho. Lisbeth Salander tinha doze anos e havia tentado matar o pai com um coquetel Molotov. Estranho seria se não tivesse havido nenhuma avaliação psiquiátrica.