Na época, Torsten Edklinth era chefe-adjunto interino da Proteção à Pessoa. Detestava, instintivamente, situações em que hooligans privados eram encarregados de executar tarefas que os hooligans pagos pelo Estado supostamente deveriam executar. Admitia, porém, que a deputada tinha todos os motivos para estar descontente — sua cama manchada era uma prova suficiente da ineficiência do Estado. Em vez de se começar a comparar seus talentos recíprocos, Edklinth se acalmara e marcara um almoço com o dono da Milton Security, Dragan Armanskij. Concluíram que a situação era sem dúvida mais séria do que a Sapo de início imaginara e que seria o caso de reforçar a proteção à deputada. Edklinth era sensato o bastante para perceber que não só os homens de Armanskij tinham a competência exigida para a tarefa, como possuíam uma formação no mínimo equivalente e um equipamento técnico superior. Tinham resolvido o problema entregando à equipe de Armanskij a responsabilidade pela proteção pessoal, ao passo que a Polícia de Segurança se encarregaria da investigação propriamente dita e pagaria a conta.
Os dois homens tinham descoberto também que se apreciavam mutuamente e trabalhavam bem em conjunto. Com o passar dos anos, haviam tornado a se encontrar em outras colaborações. Edklinth, portanto, nutria imenso respeito pela competência profissional de Dragan Armanskij, e quando este o convidou para jantar, pedindo que tivessem uma conversa confidencial estava absolutamente disposto a ouvi-lo.
Em compensação, não estava preparado para que Armanskij lhe jogasse no colo uma bomba com o pavio aceso.
— Se entendi direito, você está afirmando que a Polícia de Segurança anda envolvida numa atividade claramente criminosa.
— Não — disse Armanskij. — Você não entendeu nada. Estou afirmando que algumas pessoas, funcionários da Polícia de Segurança, andam envolvidos nessa atividade. Não acredito nem por um segundo que eles tenham o aval da direção da Sapo ou qualquer outra forma de autorização do Estado.
Edklinth olhou para as fotografias de Christer Malm que mostravam o homem subindo num carro cujas placas começavam com as letras KAB.
— Dragan... você não está de brincadeira comigo?
— Bem que eu gostaria que fosse brincadeira. Edklinth refletiu um instante.
— E como você supõe que eu vou me sair dessa?
No dia seguinte, Torsten Edklinth limpava cuidadosamente seus óculos, enquanto refletia. Tinha cabelos grisalhos, orelhas grandes e uma fisionomia enérgica. No momento, porém, sua fisionomia estava mais perplexa do que enérgica. Encontrava-se em sua sala no Palácio da Polícia, na ilhota de Kungsholmen, e passara boa parte da noite ruminando as conclusões a serem tiradas da informação fornecida por Dragan Armanskij.
Eram reflexões pouco agradáveis. A Sapo era uma instituição sueca que, com raras exceções, todos os partidos consideravam de um valor inestimável para o país. Mas também era uma instituição de que todos pareciam desconfiar, responsabilizando-a pelos mais variados e descabidos planos conspiratórios. Era inegável que os escândalos tinham sido muitos, sobretudo nos anos 1970, com os radicais de esquerda, quando certos... disparates constitucionais haviam de fato ocorrido. Mas depois de cinco comissões públicas de inquérito sobre a Sapo, duramente criticada, surgira uma nova geração de funcionários. Elementos trabalhadores, recrutados nas brigadas financeiras, de armas e fraudes da polícia comum — policiais acostumados a investigar crimes de verdade e não fantasias políticas.
A Sapo se modernizara, e a ênfase fora direcionada para a Proteção à Constituição. Sua missão, tal como estabelecida nas diretrizes governamentais, era prevenir e contornar ameaças à segurança interna do país. Em outras palavras, impedir toda atividade ilegal que se utilize de violência, ameaças ou constrangimento com o objetivo de alterar nossa Constituição, levando órgãos políticos ou autoridades decisórias a tomar decisões orientadas ou impedir o cidadão de desfrutar das liberdades e dos direitos que a Constituição lhe garante.
A missão de Proteção à Constituição era, portanto, defender a democracia sueca de complôs antidemocráticos reais ou imaginados. Estes últimos eram esperados, principalmente, de anarquistas e nazistas. Anarquistas, porque eles insistiam em praticar a desobediência civil provocando incêndios criminosos nas lojas de peles. Nazistas, porque eram nazistas e, portanto, por definição, adversários da democracia.
Formado inicialmente em direito, Torsten Edklinth começara sua carreira como procurador, trabalhando em seguida na Sapo por vinte e um anos. Primeiro em campo, como administrador da Proteção à Pessoa, depois na Proteção à Constituição, onde ascendera da análise e direção administrativa até a poltrona de chefe de gabinete. Em outras palavras, era o chefe supremo da área policial da defesa da democracia sueca. O delegado Torsten Edklinth considerava-se um democrata. Nesse sentido, a definição era simples. A Constituição era votada pelo Parlamento, e sua missão era zelar para que ela se mantivesse intacta.
A democracia sueca se fundamenta numa única lei, que pode ser resumida em três letras: YGL, abreviação de yttrandefrihetsgrundlagen, a lei fundamental sobre liberdade de expressão. A YGL estabelece o direito imprescritível de dizer, ter como opinião, pensar e acreditar em qualquer coisa. Esse direito é concedido a todos os cidadãos suecos, do nazista mais retardado ao anarquista apedrejador, passando por todos os intermediários.
Todas as outras leis fundamentais, como por exemplo a Constituição, não passam de floreios de ordem prática em torno da liberdade de expressão. A YGL, por conseguinte, é a lei que garante a sobrevivência da democracia. Edklinth julgava que sua principal tarefa era defender a liberdade que os suecos tinham de pensar e dizer exatamente o que queriam, mesmo ele não partilhasse um segundo sequer com o teor desses pensamentos e declarações.
Tal liberdade, no entanto, não significa que tudo seja permitido, o que alguns xiitas da liberdade de expressão, notadamente pedófilos e grupos racistas procuram fazer valer no debate da política cultural. Toda democracia tem seus limites, e os limites da YGL são regulados pela lei da liberdade de imprensa, a tryckfrihetsfõrordningen, ou TF, que em princípio define quatro restrições dentro da democracia. E proibido publicar pornografia envolvendo crianças e determinadas cenas de violência sexual, qualquer que seja o nível artístico reivindicado pelo autor. E proibido estimular a revolta e incitar o crime. E proibido difamar e caluniar um concidadão. E é proibido incitar o ódio racial.
A liberdade de imprensa também foi ratificada pelo Parlamento e constitui uma restrição à democracia social e democraticamente aceitável, ou seja, o contrato social que estabelece os padrões de uma sociedade civilizada. Em essência, a legislação assegura que ninguém tem o direito de perseguir ou humilhar outro ser humano.
Posto que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são garantidas por leis, há que haver uma autoridade que assegure a obediência a essas leis. Na Suécia, essa função é partilhada por duas instituições, cabendo a uma delas, o justitiekanslern, ou JK, o chanceler da justiça, autuar judicialmente os contraventores da liberdade de imprensa.
Nesse aspecto, Torsten Edklinth estava longe de se sentir satisfeito. Achava o JK muitíssimo condescendente no tocante às autuações judiciais referentes a infrações diretas cometidas contra a Constituição sueca. O JK costumava retrucar que o princípio da democracia tinha tamanha importância que só em casos extremos ele podia intervir e mover um processo. Tal atitude, porém, vinha sendo mais e mais contestada nos últimos anos, principalmente depois que o secretário-geral do comitê de Helsinque na Suécia, Robert Hârdh, desenterrara um relatório analisando a falta de iniciativa do JK ao longo de vários anos. O relatório constatava que era praticamente impossível mover um processo e condenar alguém por incitação ao ódio racial.