A segunda instituição era o departamento da Sapo para a Proteção à Constituição, e o delegado Torsten Edklinth levava muito a sério a sua missão. Julgava que era o mais belo cargo, e o mais importante, que um policia sueco poderia ocupar, e não o teria trocado por nenhum outro em toda a Suécia judicial ou policial. Ele era simplesmente o único policial do país que tinha por missão cumprir o papel de policial político. Era uma função delicada que exigia grande sabedoria e um senso de justiça extremamente acurado já que a experiência de vim número excessivo de países mostrava que uma polícia política podia com facilidade se transformar na maior ameaça contra a democracia.
A mídia e a população pensavam que o principal objetivo da Proteção à Constituição era administrar nazistas e militantes vegetarianos. Esse tipo de manifestante decerto interessava muitíssimo à Proteção à Constituição, mas existia, além disso, toda uma série de instituições e acontecimentos que também faziam parte das atribuições do departamento. Se, por exemplo, o rei ou do comandante em chefe do Exército pusesse na cabeça que o sistema parlamentar estava superado e que o Parlamento deveria ser substituído por uma ditadura militar, a Proteção à Constituição ficaria imediatamente de olho no rei ou no comandante em chefe. E se um grupo de policiais resolvesse interpretar livremente a lei a tal ponto que os direitos constitucionais de um indivíduo ficassem prejudicados, cabia também à Proteção à Constituição reagir. Além disso, em casos graves, a investigação ficava sob as ordens do procurador-geral da nação.
O problema, evidentemente, era que a Proteção à Constituição tinha a tarefa quase que apenas de análise e averiguação, e nenhuma ação de intervenção. Por isso, em geral, era a polícia comum ou outras divisões da Sapo que intervinham quando da prisão de nazistas.
Torsten Edklinth julgava essa realidade profundamente insatisfatória. Quase todos os países normais mantêm, de uma forma ou de outra, um tribunal constitucional independente com o objetivo específico de zelar para que as autoridades não lesem a democracia. Na Suécia, essa função era confiada ao procurador-geral da Coroa, ou o justitieombudsman, um indivíduo designado pelo Parlamento para cuidar que os funcionários do Estado respeitassem a lei no exercício de suas funções, tendo, porém, de se conformar às decisões de outros indivíduos. Se a Suécia tivesse um tribunal constitucional, a advogada de Lisbeth Salander poderia ter movido imediatamente um processo contra o Estado sueco por violação de direitos constitucionais. O tribunal poderia, assim, ter exigido a apresentação de todos os documentos ter intimado qualquer pessoa, inclusive o primeiro-ministro, até que o caso fosse solucionado. Na atual situação, a advogada poderia, a rigor, alertar o institieombudsman, o qual, contudo, não tinha autoridade para ir até a Sapo e exigir examinar os documentos.
Torsten Edklinth fora durante vários anos um caloroso defensor da implantação de um tribunal constitucional. Se fosse assim, ele poderia lidar de uma forma muito simples com a informação repassada por Dragan Armanskij, dando um depoimento à polícia e comunicando os fatos ao tribunal. Desse modo, um processo inexorável seria posto em andamento.
No atual estado de coisas, Torsten Edklinth não possuía competência jurídica para abrir um inquérito preliminar.
Ele suspirou e serviu-se de uma pitada de rape.
Caso as informações de Dragan Armanskij procedessem, isso significava que alguns ocupantes de cargos superiores da Sapo haviam fechado os olhos para uma série de delitos graves contra uma mulher sueca, e mais tarde tinham mandado internar sua filha, com bases falsas, num hospital psiquiátrico e, por fim, tinham deixado livre um ex-espião da elite russa, para que ele se dedicasse ao tráfico de armas, de drogas e de mulheres. Torsten Edklinth fez uma careta. Nem queria começar a contar quantas infrações à lei não teriam ocorrido ao longo do caminho. Para não falar no roubo ao domicílio de Mikael Blomkvist, na agressão à advogada de Lisbeth Salander e talvez até — o que Edklinth se negava a acreditar — em cumplicidade no assassinato de Alexander Zalachenko.
Torsten Edklinth não tinha a menor vontade de se envolver numa confusão daquelas. Infelizmente, porém, já fora envolvido desde o instante em que Dragan Armanskij o convidara para jantar.
A questão agora era descobrir uma maneira de administrar a situação. Formalmente, a resposta era simples. Se o relato de Armanskij fosse verídico, as liberdades e os direitos constitucionais de Lisbeth Salander tinham sido completamente desrespeitados. O mais provável era topar com um autêntico ninho de cobras, considerando-se que órgãos políticos ou autoridades com poder de decisão podiam ter sido influenciados em suas sentenças, o que punha o dedo no cerne das funções da Proteção à Constituição. Torsten Edklinth era um policial com conhecimento de um crime, e seu dever, portanto, seria alertar um procurador. De modo mais informal, a resposta não era tão simples. Era, por sinal, bastante complicada.
A inspetora Rosa Figuerola, apesar de seu nome incomum, nascera na Dalecarlia, numa família estabelecida na Suécia desde os tempos de Gustavo Vasa. Era uma dessas mulheres em que as pessoas reparam, e por diversos motivos. Tinha trinta e seis anos, olhos azuis, e não media menos de um metro e oitenta e quatro. Era bonita, e seu jeito de se vestir a tornava ainda mais atraente.
E tinha o corpo excepcionalmente bem definido.
Na adolescência, praticara atletismo de alto nível e, aos dezessete anos, por pouco não se classificara pela equipe sueca para os Jogos Olímpicos. De lá para cá, abandonara o atletismo, mas malhava cinco vezes por semana feito uma condenada numa academia. Malhava com tanta freqüência que as endorfinas funcionavam como droga, o que a deixava em abstinência quando interrompia as atividades físicas. Praticava corrida e musculação, jogava tênis, lutava caratê e, além disso, já se dedicara ao bodybuilding por dez anos. Contudo, reduzira consideravelmente essa variante extrema do culto ao corpo dois anos antes, numa época em que ficava duas horas por dia puxando ferro. Atualmente, cumpria apenas uma meia horinha diária, mas sua forma física era tal, e seu corpo tão musculoso, que alguns colegas pouco simpáticos a chamavam de Sr. Figuerola. Quando vestia regatas ou vestidos de verão, ninguém conseguia não reparar em seus bíceps e deltóides.
Sua constituição física, portanto, incomodava vários de seus colegas homens, e também o fato de seu papel não ser meramente decorativo. Concluíra o secundário com as melhores notas e aos vinte anos ingressara na Escola de Polícia, trabalhando depois por nove anos na polícia de Uppsala, enquanto em seu tempo livre estudava direito. Só por brincadeira, prestara exame para Ciências Políticas, e também passara. Não tinha o menor problema em memorizar e analisar dados. Raramente lia romances policiais ou qualquer literatura de lazer. Em compensação, mergulhava com o maior interesse nos assuntos mais variados, do direito internacional à história da Antigüidade.
Na polícia, deixara de ser agente — o que representara uma perda imensa para a segurança das ruas de Uppsala — para assumir o cargo de inspetora criminal, primeiro na Brigada Criminal, depois na brigada especializada em crimes financeiros. Em 2000, solicitara um posto na Polícia de Segurança de Uppsala e, em 2001, fora transferida para Estocolmo. Começara trabalhando na contra-espionagem, mas fora quase imediatamente chamada para a Proteção à Constituição por Torsten Edklinth, que conhecia o pai de Rosa Figuerola e acompanhara a carreira dela ao longo dos anos.
Quando Edklinth finalmente concluiu que precisava agir com rapidez a respeito da informação fornecida por Dragan Armanskij, refletiu um momento, e então pegou o telefone e convocou Rosa Figuerola para sua sala. Como ainda não fazia três anos que ela trabalhava na Proteção à Constituição, Figuerola ainda estava mais próxima de uma autêntica policial que de uma burocrata escaldada.