Naquele dia, usava uma calça jeans justa, sandálias de saltinho turquesa e uma jaqueta azul-marinho.
— No momento, você está trabalhando em quê? — perguntou Edklinth cumprimentando-a, para então convidá-la a sentar-se.
— Estamos investigando o assalto àquela mercearia de Sunne, sabe, que aconteceu há duas semanas.
Certamente não era papel da Sapo se encarregar de assaltos a mercearias. Esse tipo de trabalho de base cabia exclusivamente à polícia comum. Rosa Figuerola coordenava, na Proteção à Constituição, uma área com cinco colaboradores que lidava com análise de criminalidade política. Sua ferramenta mais importante era um certo número de computadores em rede com o arquivo dos incidentes relatados pela polícia comum. Praticamente todos os depoimentos dados à polícia, em qualquer ponto da Suécia, passavam pelos computadores chefiados por Rosa Figuerola. Esses computadores continham um software que rastreava automaticamente todos os relatórios policiais e era programado para reagir a trezentas e dez palavras específicas, tais como turco, skinhead, suástica, imigrante, anarquista, saudação hitleriana, nazista, nacional-democrata, traidor da pátria, puta judia ou muçulmano. Assim que uma palavra desse tipo aparecia num relatório policial, o computador dava o alerta e o relatório em questão era baixado e examinado de perto. Caso o contexto justificasse, era possível pedir acesso ao inquérito preliminar e aprofundar as investigações.
Uma das tarefas da Proteção à Constituição era publicar anualmente um relatório intitulado Ameaças à segurança de Estado, que constituía no único levantamento estatístico confiável sobre criminalidade política. Essa estatística baseava-se exclusivamente nos depoimentos colhidos nas delegacias locais. No caso do assalto à mercearia de Sunne, o software reagira a três palavras-chave — imigrante, dragona e turco. Dois jovens, usando máscaras e armados com uma pistola, tinham limpado a mercearia, de propriedade de um imigrante. Levaram a quantia de 2780 coroas e um pacote de cigarros. Um dos delinqüentes usava uma jaqueta de couro com dragonas representando a bandeira sueca. O outro bandido tinha gritado várias vezes "seu turco de merda" para o proprietário da loja e o obrigara a se deitar no chão.
Era o que bastava para a equipe de Figuerola acessar o inquérito preliminar com o objetivo de descobrir se os ladrões estavam mancomunados com as gangues nazistas do Vármland, e nesse caso, se o assalto poderia ser considerado crime racial, já que um dos ladrões se expressara nesse sentido. Conforme o caso, o assalto poderia constar em estatísticas futuras, que mais tarde seriam analisadas e lançadas na estatística européia que os escritórios da União Européia de Viena preparavam todos os anos. Poderia também acontecer de os ladrões serem escoteiros que tinham comprado uma jaqueta com a bandeira sueca e que não passasse de mero acaso o proprietário da loja ser um imigrante e a palavra "turco" ter sido pronunciada. Se assim fosse, a área de Figuerola apagaria aquele assalto das estatísticas.
— Tenho uma missão arriscada para você — disse Torsten Edklinth.
— Ah, é? — fez Rosa Figuerola.
— Um serviço que pode te jogar no mais profundo descrédito ou até afundar sua carreira.
— Entendo.
— Mas se você for bem-sucedida e as coisas acontecerem do jeito certo, pode significar um passo enorme na sua carreira. Pretendo transferir você para a unidade de intervenção da Proteção à Constituição.
— Lamento informar, mas a Proteção à Constituição não tem unidade de intervenção.
— Tem, sim — disse Torsten Edklinth. — Agora tem. Eu criei essa unidade hoje de manhã. Por enquanto, conta com uma só pessoa. Você.
Rosa Figuerola pareceu hesitar.
—A tarefa da Proteção à Constituição é proteger a Constituição de ameaças internas, o que, grosso modo, quer dizer nazistas e anarquistas. Mas o que a gente faz se a ameaça à Constituição vier da nossa própria organização?
Torsten Edklinth passou a meia hora seguinte contando em detalhe a história que Dragan Armanskij lhe relatara na noite anterior.
— Quem é a fonte dessas informações? — perguntou Rosa Figuerola.
— Por enquanto não tem a menor importância. Concentre-se na informação que temos.
— O que eu quero saber é se você confia nessa fonte.
— Conheço essa fonte há muitos anos e considero-a extremamente confiável.
— Isso tudo é simplesmente... bem, não sei. Se eu chamar de "inverossímil", vai ser pouco.
Edklinth meneou a cabeça.
— Como um romance de espionagem — disse ele.
— Bem, e o que você quer de mim?
— A partir de agora, está desligada de todas as suas demais missões. Agora você só tem uma: descobrir até que ponto essa história é verdadeira. Ou você confirma, ou rejeita essas afirmações. Preste contas diretamente para mim, e para mais ninguém.
— Meu Deus — disse Rosa Figuerola. —Agora entendo o que você quis dizer quando avisou que eu poderia me queimar.
— E. Mas se for verdade... se uma parte mínima dessas informações for verdade, estaremos diante de uma crise constitucional que vamos ter de administrar.
— Por onde eu começo? E como?
— Comece pelo mais simples. Leia o tal relatório que o Gunnar Bjõrck escreveu em 1991. Em seguida, identifique o pessoal que estaria vigiando o Mikael Blomkvist. De acordo com a minha fonte, o proprietário do carro é um tal de Gõran Mârtensson, um policial de quarenta anos que mora na Vittangi-gatan, em Vàllingby. Depois disso, identifique o outro cara que aparece nas fotos tiradas pelo fotógrafo do Mikael Blomkvist. O mais jovem, este loiro aqui.
— Certo.
— Depois, levante o passado do Evert Gullberg. Nunca ouvi falar nesse sujeito, mas, pelo que diz minha fonte, ele necessariamente tem uma ligação com a Polícia de Segurança.
— O que significaria que alguém daqui teria encomendado o assassinato de um espião a um velho de setenta e oito anos. Não acredito.
— Mesmo assim, verifique. E sua investigação deve ser sigilosa. Antes de tomar qualquer atitude, quero ser informado. Não quero nenhum furo.
— Você está me pedindo uma investigação gigantesca. Como é que vou fazer tudo isso sozinha?
— Você não vai fazer sozinha. Só vai cuidar dessa primeira investigação. Se me disser que não descobriu nada, fica por isso mesmo. Se descobrir qualquer coisa suspeita, aí a gente vê.
Rosa Figuerola passou o intervalo do almoço puxando ferro na academia do Palácio da Polícia. Seu almoço propriamente dito consistia num café preto e num sanduíche de almôndegas com salada de beterraba, que ela foi comer em sua sala. Fechou a porta, abriu espaço na mesa e começou a ler o relatório de Gunnar Bjôrck enquanto comia o sanduíche.
Leu também o anexo com a correspondência entre Bjõrck e o Dr. Peter Teleborian. Anotou todos os nomes e fatos do relatório que seriam objeto de investigação. Ao fim de duas horas, levantou-se e foi até a máquina buscar mais um café. Ao sair da sala, trancou a porta, seguindo um dos procedimentos rotineiros da Sapo.
Primeiro, conferiu o número do cadastro. Ligou para o arquivista, que confirmou não existir nenhum relatório com aquele número. Segundo, consultou os arquivos da imprensa, o que foi mais proveitoso. Os dois jornais vespertinos e um matutino mencionavam uma pessoa gravemente ferida no incêndio de um carro na Lundagatan naquele dia de 1991. A vítima era um homem de meia-idade cujo nome não era citado. Um dos vespertinos publicava o relato de uma testemunha dizendo que o incêndio fora provocado por uma garota. Seria, portanto, o famoso coquetel Molotov que Lisbeth Salan-der teria jogado num agente russo chamado Zalachenko. Em todo caso, o incidente parecia ter ocorrido de fato.