— Uma coisa me chamou a atenção — disse Rosa.
— Estou te escutando.
— Evert Gullberg. Ele fez o serviço militar nos anos 1940, depois virou um advogado especializado em assuntos fiscais e desapareceu nos anos 1950.
— Sim?
— Quando falamos nisso, falamos como se ele tivesse sido um matador de aluguel.
— Sei que pode parecer forçação de barra, mas...
— O que me chamou a atenção é que o passado dele, nos documentos, é tão tênue que parece quase fabricado. Nos anos 1950 e 1960, a Sapo, assim como o serviço secreto do Exército, estabeleceu unidades fora da matriz.
Torsten Edklinth meneou a cabeça.
— Eu estava me perguntando quando ia lhe ocorrer essa possibilidade.
— Preciso de uma autorização para entrar nos arquivos dos funcionários dos anos 1950 — disse Rosa Figuerola.
— Não — disse Torsten Edklinth, balançando a cabeça. — Não dá para entrar nos arquivos sem autorização do secretário-geral, e não queremos chamar a atenção antes de termos algo mais nas mãos.
— Então como a gente faz, na sua opinião?
— Mârtensson — disse Edklinth. — Descubra no que ele está trabalhando.
No seu quarto fechado a chave, Lisbeth Salander examinava cuidadosamente o sistema de ventilação quando ouviu a porta se abrir e o Dr. Anders Jonasson entrou. Passava das dez da noite de terça-feira. Ele interrompeu seus Projetos de fuga do Sahlgrenska.
Depois de medir a parte de ventilação da janela, constatara que conseguiria passar a cabeça e que não deveria encontrar muita dificuldade corri o resto do corpo também. Havia três andares entre ela e o térreo, mas uma combinação de lençóis rasgados com a extensão de três metros de uma lâmpada de apoio deveria resolver o problema.
Em pensamento, já planejara sua fuga nos mínimos detalhes. O problema eram as roupas. Estava usando calcinha e camisola do Conselho Geral e sandálias de plástico emprestadas. Tinha as duzentas coroas em dinheiro que Annika Giannini lhe dera para que pudesse pedir doces no quiosque do hospital. Era o suficiente para comprar uma calça jeans e uma camiseta no Fourmis, desde que conseguisse localizar o brechó em Gõteborg. O restante do dinheiro deveria ser suficiente para ela ligar para Praga. Depois, as coisas entrariam nos eixos. Ela cogitava aterrissar em Gibraltar poucos dias depois da fuga e a partir daí construir uma nova identidade em algum lugar do mundo.
Anders Jonasson fez um gesto de cumprimento com a cabeça e se sentou na poltrona dos visitantes. Ela fez o mesmo em sua cama.
— Olá, Lisbeth. Desculpe não ter tido tempo de vir visitá-la nesses últimos dias, mas me aprontaram horrores no pronto-socorro e, ainda por cima, fui indicado para servir como mentor de dois jovens médicos.
Ela assentiu com a cabeça. Não esperava que o tal Anders Jonasson lhe fizesse visitas pessoais.
Ele pegou a ficha dela e examinou com atenção o gráfico da temperatura e sua medicação. Observou que a temperatura tinha se estabilizado entre 37 e 37,5 graus e que, naquela semana, ela não precisara de analgésicos para a dor de cabeça.
— A sua médica é a doutora Endrin. Você se dá bem com ela?
— Ela é legal — respondeu Lisbeth sem muito entusiasmo.
— Tudo bem se eu examinar você?
Ela fez que sim com a cabeça. Ele tirou do bolso uma lanterna-caneta, inclinou-se sobre ela e iluminou seus olhos para verificar a contração das pupilas. Pediu que ela abrisse a boca e examinou a garganta. Em seguida, pos suavemente as mãos em seu pescoço e virou sua cabeça para a frente e para trás, e depois para os lados, várias vezes.
— Nenhum problema na nuca? — ele perguntou. Ela negou com a cabeça.
- E a dor de cabeça?
- Aparece de vez em quando, mas depois passa.
- O processo de cicatrização ainda não está completo. A dor de cabeça vai sumir aos poucos.
O cabelo dela ainda estava tão curto que ele só precisou afastar um pequeno tufo para apalpar a cicatriz acima da orelha. Não apresentava nenhum problema, mas ainda havia uma casquinha.
— Você andou cocando a ferida de novo. Pare com isso, está ouvindo? Ela concordou com a cabeça. Ele pegou seu cotovelo esquerdo e levantou-lhe o braço.
— Você consegue erguer o braço, sozinha? Ela ergueu o braço.
— Sente alguma dor ou incômodo no ombro? Ela fez que não com a cabeça.
— Ele não repuxa?
— Um pouco.
— Acho que você deveria trabalhar mais os músculos do ombro.
— Difícil, num quarto trancado. Ele sorriu.
— Isso não vai durar para sempre. Você está fazendo os exercícios que a fisioterapeuta indicou?
Ela assentiu com a cabeça.
Ele pegou o estetoscópio e encostou-o no próprio pulso para aquecê-lo. Depois, sentou-se na beirada da cama, desabotoou a camisola de Lisbeth, auscultou-lhe o coração e tomou seu pulso. Pediu que ela se inclinasse para a frente e colocou o estetoscópio em suas costas para auscultar os pulmões.
— Tussa. Ela tossiu.
— Certo. Pode abotoar a camisola. Clinicamente falando, você está mais ou menos recuperada.
Ela meneou a cabeça. Esperou que ele se levantasse, prometendo voltar a vê-la em alguns dias, mas ele permaneceu sentado na beirada da cama. Não ralou nada por um bom tempo, parecia refletir. Lisbeth aguardou pacientemente.
— Sabe por que eu me tornei médico? — ele perguntou de repente.
Ela fez que não com a cabeça.
— Venho de uma família de operários. Eu sempre quis ser médico. Na verdade, quando eu era adolescente queria ser psiquiatra. Eu era todo intelectual.
Lisbeth observou-o com uma súbita atenção assim que ele pronunciou a palavra "psiquiatra".
— Mas eu não tinha certeza se conseguiria terminar o curso. Por isso, depois do colégio, me formei como soldador e exerci essa profissão durante alguns anos.
Balançou a cabeça, como se para confirmar que o que dizia era verdade.
— Eu achava uma boa idéia ter um diploma no bolso para o caso de dar zebra no curso de medicina. E a diferença entre um médico e um soldador não é muito grande. Nos dois casos, trata-se de uma espécie de bricolagem. E atualmente trabalho aqui no Sahlgrenska consertando pessoas como você.
Ela franziu o cenho perguntando-se, desconfiada, se ele estava zoando com ela. Mas ele parecia absolutamente sério.
— Lisbeth... eu estava pensando...
Ele ficou calado tanto tempo que Lisbeth quase teve vontade de perguntar o que ele queria. Mas controlou-se e esperou.
— Eu estava pensando se você ficaria aborrecida se eu fizesse uma pergunta pessoal, íntima. Quero dizer, não como médico. Não vou anotar sua resposta e não vou comentar com quem quer que seja. Você não precisa responder se não quiser.
— O que é?
— É uma pergunta pessoal e indiscreta. O olhar dela cruzou com o dele.
— Na época em que internaram você na Sankt Stefan, em Uppsala, quando você tinha doze anos, você se negou a responder todas as vezes que um psiquiatra tentou falar com você. Como pode ser isso?
Os olhos de Lisbeth Salander escureceram um pouco. Ela fitou Anders Jonasson com um olhar sem emoção. Permaneceu calada por uns dois minutos.