— Por que está perguntando isso? — ela quis saber, por fim.
— Para ser sincero, não sei muito bem. Acho que estou tentando entender alguma coisa.
A boca de Lisbeth se contraiu ligeiramente.
- Não falo com os médicos de doidos porque eles nunca escutam o que eu digo.
Anders Jonasson assentiu com a cabeça e então, de repente, começou a rir.
— Está certo. Me diga... o que você acha do Peter Teleborian? Anders Jonasson soltara aquele nome de um jeito tão inesperado que Lisbeth quase se sobressaltou. Seus olhos se estreitaram um bocado.
— Que porra é essa? Uma pegadinha? O que você está querendo?
De repente, a voz dela soava como lixa. Anders Jonasson inclinou-se tanto em sua direção que estava quase invadindo seu espaço pessoal.
— E que um... como você disse mesmo?... um médico de doidos chamado Peter Teleborian, que não é exatamente desconhecido na minha área, tentou me convencer duas vezes, nesses últimos dias, a lhe dar uma oportunidade para te examinar.
Lisbeth sentiu de repente uma corrente gelada percorrer suas costas.
— O Tribunal de Instâncias vai designá-lo para fazer sua avaliação psíquica legal.
— E?
— Eu não gosto do Peter Teleborian. Não permiti que ele tivesse acesso a você. Na segunda vez, ele apareceu sem avisar e tentou entrar escondido, passando a conversa numa enfermeira.
Lisbeth cerrou a boca.
— O comportamento dele me pareceu meio estranho e insistente demais para ser normal. Por isso minha vontade de saber o que você acha dele.
Então foi a vez de Anders Jonasson esperar pacientemente que Lisbeth Salander se dispusesse a falar.
— O Teleborian é um canalha — ela respondeu afinal.
— Existe uma questão pessoal entre vocês?
— Pode-se dizer que sim.
— Também tive uma conversa com um sujeito lá de cima que, por assim dizer, gostaria que eu permitisse que o Teleborian tivesse acesso a você.
— E?
— Perguntei se ele tinha competência técnica para avaliar o seu estado e aí mandei ele se catar. Só que com termos um pouco mais diplomáticos.
— Certo.
— Só mais uma pergunta. Por que você está me dizendo tudo isso?
— Você é que perguntou.
— Sei. Mas eu sou médico e fiz psiquiatria. Então por que você está falando comigo? Devo deduzir que você confia um pouco em mim?
Ela não respondeu.
— Bem, prefiro interpretar assim. Saiba que você é minha paciente. Isso significa que trabalho para você e para mais ninguém.
Ela o fitou, desconfiada. Ele a observou em silêncio durante algum tempo. Então se pôs a falar em tom casual.
— Do ponto de vista médico, você está mais ou menos restabelecida. Só precisa de mais algumas semanas de convalescência. Infelizmente, você está ótima.
— Infelizmente?
— Sim. — Ele lhe endereçou um sorrisinho. — Definitivamente, você está bem até demais.
— O que está querendo dizer?
— Quero dizer que não tenho mais nenhum motivo para mantê-la aqui isolada e que a procuradora logo vai poder pedir sua transferência para uma casa de detenção em Estocolmo, até o julgamento, que deve ocorrer daqui a seis semanas. Na minha opinião, esse pedido deve ocorrer já na próxima semana. E isso significa que o Peter Teleborian vai ter a oportunidade de examinar você.
Ela ficou completamente imóvel na cama. Anders Jonasson pareceu aborrecido e se inclinou para ajeitar o travesseiro dela. Falou claro, como se estivesse pensando em voz alta.
— Você não tem mais dor de cabeça e está sem febre, é provável que a doutora Endrin lhe dê alta.
Ele se levantou de repente.
— Obrigado por ter falado comigo. Ainda venho te ver antes de você ser transferida.
Já estava na porta quando ela falou.
— Doutor Jonasson.
Ele se virou em sua direção.
— Obrigada.
Ele meneou brevemente a cabeça antes de sair e fechar a porta à chave.
Lisbeth Salander permaneceu um bom tempo com os olhos fixos na norta trancada. Por fim, deitou-se e olhou para o teto.
Foi então que descobriu que havia algo duro debaixo de sua nuca. Ergueu o travesseiro e teve a surpresa de ver um saquinho de pano que certamente não se encontrava ali antes. Abriu-o e descobriu, sem entender nada, um computador de mão Palm Tungsten T3 e um carregador de bateria. Então olhou melhor para o computador e percebeu uma ranhura na borda superior. Seu coração deu um salto. E o meu Palm! Mas como... Atônita, desviou o olhar para a porta trancada. Anders Jonasson era um homem cheio de surpresas. Ligou o computador, mas logo viu que ele estava protegido por uma senha.
Olhou, frustrada, para a tela que piscava impaciente. E como é que esses idiotas acham que eu vou... Então olhou para o saquinho de pano e descobriu, lá dentro, um pedaço de papel dobrado. Pegou-o, abriu e leu a linha escrita numa caligrafia caprichada.
Você não é a rainha dos hackers? Pois então descubra! Super B.
Lisbeth riu pela primeira vez desde várias semanas. Obrigada por pagá-la na mesma moeda! Refletiu alguns segundos. Então pegou a canetinha do Palm e escreveu a combinação 9277, que correspondia às letras WASP no teclado. Era o código que o Maldito Super-Blomkvist tinha sido obrigado a descobrir quando entrara no apartamento dela na Fiskargatan, em Mosebacke, para desativar o alarme.
Não funcionou.
Tentou o 78737, que correspondia às letras SUPER.
Também não funcionou. Era óbvio que o Maldito Super-Blomkvist queria que ela usasse o computador, portanto devia ter escolhido uma senha relativamente simples. Tinha assinado Super-Blomkvist, apelido que ele detestava. Ela fez algumas associações, refletiu um instante. Com toda certeza, envolveria alguma alfinetada. Teclou 3434, equivalente a FIFI.
O computador ligou suavemente.
Ainda teve direito a um emoticon sorridente munido de um balão.
[Está vendo? Não foi tão difícil. Proponho que você clique em Meus Documentos.]
Ela imediatamente encontrou o documento [Olá Sally] bem no alto da lista. Abriu e leu.
[Antes de mais nada: isto fica só entre nós. A sua advogada, ou seja, a minha irmã Annika, ignora por completo que você está com esse computador. Deve continuar sendo assim.
Não faço idéia de até que ponto você está a par do que se passa fora desse seu quarto trancado, mas saiba que estranhamente, apesar desse seu temperamento, alguns babacas cheios de lealdade estão trabalhando por você. Quando tudo isso acabar, vou fundar uma associação beneficente que vou chamar de Os Cavaleiros da Távola Biruta, cujo único objetivo será organizar um jantar anual em que a gente vai morrer de rir falando mal de você. (Não, você não será convidada.)
Bem. Vamos aos fatos. A Annika está se preparando para o julgamento. Um problema, nesse contexto, é que ela obviamente trabalha para você e é adepta dessa bobajada toda de integridade. Isso significa que nem comigo ela comenta o que vocês duas conversam, o que é meio limitador. Por sorte, ela aceita receber informações.
Eu e você precisamos estar de acordo.
Não use meu endereço de e-mail.
Eu talvez seja meio paranóico, mas tenho bons motivos para achar que não sou o único a consultar minha caixa postal. Se tiver alguma coisa para me enviar, entre no grupo Yahoo [Tavola-Biruta]. Login: Fifi e senha: I9i2f7i7.]
Lisbeth leu duas vezes a carta de Mikael e olhou, perplexa, para o computador de mão. Depois de um período de celibato informático absoluto, estava num estado de incalculável cibercarência. Achou que o Super-Blomkvist tinha mesmo raciocinado com os pés quando dera um jeito de lhe passar clandestinamente um computador, esquecendo por completo que ela precisava de um celular para acessar a rede.
Estava nesse ponto de suas reflexões quando escutou passos no corredor.
Jogou imediatamente o computador e enfiou-o debaixo do travesseiro. A chave estava girando na fechadura quando ela percebeu que o saquinho de e o carregador ainda estavam sobre o criado-mudo. Estendeu a mão, enfiou depressa o saquinho debaixo do cobertor, e prendeu o cabo e o carregador no meio das pernas. Estava comportadamente deitada, olhando para o teto quando a enfermeira da noite entrou, cumprimentou-a com gentileza e perguntou-lhe como estava e se precisava de alguma coisa.