— Sim, é legal. O governo tem poder para tomar decisões mais amplas caso de ameaça à Constituição. Se um grupo de militares ou policiais começar a conduzir uma política independente do Ministério de Relações Exteriores, significa que houve um golpe de Estado em nosso país.
- Relações Exteriores? — perguntou o ministro da Justiça.
O primeiro-ministro balançou subitamente a cabeça.
— O Zalachenko era um dissidente de uma potência estrangeira — disse Rosa Figuerola. — Segundo o Mikael Blomkvist, ele transmitia informações para serviços de inteligência estrangeiros. Se o governo não foi informado, significa que houve um golpe de Estado.
— Entendo aonde você quer chegar — disse o primeiro-ministro. — Agora, deixe-me expressar a minha opinião.
O primeiro-ministro se levantou e deu a volta na mesa. Parou diante de Edklinth.
— O senhor tem uma colaboradora inteligente. E que, além disso, fala sem papas na língua.
Edklinth engoliu em seco e meneou a cabeça. O primeiro-ministro voltou-se para o seu ministro da Justiça.
— Chame seu secretário de Estado e o diretor jurídico. Amanhã de manhã, quero um documento que dê à Proteção à Constituição poderes extraordinários para atuar neste caso. A missão consiste em definir o grau de veracidade das afirmações que nos preocupam, reunir uma documentação sobre sua amplitude e identificar as pessoas responsáveis ou implicadas.
Edklinth assentiu com a cabeça.
— Esse documento não diz que vocês vão conduzir um inquérito preliminar; posso estar enganado, mas acho que nesse estágio só o procurador-geral da nação pode indicar o responsável por um inquérito preliminar. Em compensação, posso encarregá-lo da missão de conduzir sozinho uma investigação com o objetivo de descobrir a verdade. Portanto, vai conduzir uma investigação oficial do Estado. Está me acompanhando?
— Sim. Mas, se me permite observar, eu mesmo sou um ex-procurador.
— Humm. Vamos pedir que o diretor jurídico dê uma olhada e defina 0 que é oficialmente correto. Seja como for, o senhor é o único responsável por essa investigação. Pode designar os colaboradores de que vai precisar. Se encontrar provas de alguma atividade criminosa, deverá transmiti-las ao Ministério Público, que decidirá sobre eventuais ações judiciárias.
— Tenho que verificar nos textos o que, exatamente, está em vigor, mas me parece que o senhor tem obrigação de informar o porta-voz do governo e a Comissão Constitucional... isso tudo virá à tona rapidamente — disse o ministro da Justiça.
— Ou seja, vamos ter que agir depressa — disse o primeiro-ministro.
— Humm — fez Rosa Figuerola.
— O que foi? — perguntou o primeiro-ministro.
— Ainda há dois problemas... Em primeiro lugar, a publicação da Millennium poderia se chocar com a nossa investigação e, em segundo, o julgamento da Lisbeth Salander vai começar em poucas semanas.
— Temos como saber quando a Millennium pretende publicar?
— Não custa perguntar — disse Edklinth. — A última coisa que queremos é nos envolver no trabalho da imprensa.
— No que diz respeito à Salander... — começou a dizer o primeiro--ministro. Refletiu por um momento. — Seria terrível descobrir que ela realmente foi vítima dos abusos relatados pela Millennium... isso pode ser mesmo verdade?
— Creio que sim — disse Edklinth.
— Nesse caso, precisamos garantir que ela seja indenizada e, antes de mais nada, que não volte a ser vítima de outro abuso de poder — disse o primeiro-ministro.
— E como vamos fazer isso? — perguntou o ministro da Justiça. — O governo não pode, de modo algum, interferir numa ação judicial em andamento. E contra a lei.
— Talvez pudéssemos falar com o procurador...
— Não — disse Edklinth. — Como primeiro-ministro, o senhor não pode influenciar no processo judiciário.
— Em outras palavras, a Salander terá que travar seu combate no tribunal — disse o ministro da Justiça. — E só se ela perder o processo e apelar e que o governo pode intervir para indultá-la ou ordenar ao Ministério Público que avalie se é o caso de reabrir o processo.
E acrescentou:
- Mas isso só vale se ela for condenada a uma pena prisional. Se ela for condenada a uma internação psiquiátrica, o governo nada pode fazer. Quando se trata de uma questão de ordem médica, não compete ao primeiro-ministro determinar se ela é mentalmente sã ou não.
Às dez da noite de sexta-feira, Lisbeth Salander escutou a chave na fechadura. Desligou imediatamente o computador de mão e o enfiou debaixo do travesseiro. Quando levantou os olhos, viu Anders Jonasson fechando a porta.
— Boa noite, senhorita Salander — disse ele. — Como vai?
— Estou com uma dor de cabeça terrível e me sinto febril — disse Lisbeth.
— Isso não é nada bom.
Lisbeth não parecia particularmente incomodada com a febre nem com a dor de cabeça. Anders Jonasson examinou-a por dez minutos. Verificou que no início da noite a febre tornara a subir bastante.
— E uma pena que isso esteja acontecendo agora, quando você estava se restabelecendo tão bem. Infelizmente, não vou poder lhe dar alta antes de pelo menos duas semanas.
— Duas semanas são suficientes. Ele fitou-a demoradamente.
A distância entre Londres e Estocolmo pela estrada é, por alto, de mil e oitocentos quilômetros, e teoricamente são necessárias vinte horas para percorrê-los. Na prática, foram quase vinte horas só para chegar à fronteira da Alemanha com a Dinamarca. O céu estava coberto por nuvens pesadas como chumbo, e na segunda-feira, enquanto o homem que se apresentava como Trinity atravessava a ponte de 0resund, a chuva desabou. Ele reduziu a velocidade e acionou os limpadores do pára-brisa.
Trinity achava um pesadelo dirigir na Europa, com o continente inteiro teimando em andar do lado errado da estrada. Preparara sua caminhonete no sábado de manhã e pegara a balsa de Doves para Calais, em seguida atravessara a Bélgica passando por Liège. Cruzara a fronteira alemã em Aix-la-Chapel-le e subira pela auto-estrada em direção a Hamburgo e depois Dinamarca.
Seu sócio, Bob the Dog, dormia no banco traseiro. Tinham se revezado na direção e, exceto por algumas paradas de uma hora para comer, mantiveram uma velocidade regular de noventa quilômetros por hora. Com dezoito anos de idade, a caminhonete não tinha condições de andar mais rápido.
Havia maneiras mais simples de ir de Londres a Estocolmo, mas infelizmente era pouco provável que se pudesse entrar na Suécia com cerca de trinta quilos de equipamento eletrônico fazendo um vôo regular. Embora tivessem cruzado seis fronteiras durante o trajeto, Trinity não fora parado por nenhum aduaneiro ou policial. Ele era um ardente partidário da União Européia, cujas regras simplificavam as visitas ao continente.
Trinity estava com trinta e dois anos e nascera na cidade de Bradford, mas desde criança morava no norte de Londres. Tivera uma formação bastante medíocre, uma escola profissionalizante que lhe fornecera um diploma de técnico em telefonia, e depois dos dezenove anos, ele de fato trabalhara como instalador na British Telecom por três anos.
Na verdade, tinha conhecimentos teóricos em eletrônica e informática que lhe permitiam encarar sem problema discussões em que superava qualquer especialista no assunto. Vivera no meio de computadores desde os dez anos, e pirateara seu primeiro computador aos treze. Isso aguçara sua vontade e, aos dezesseis anos, já evoluíra tanto, que podia ser comparado aos melhores do mundo. Em determinada ocasião, passara cada minuto do seu dia acordado diante da tela do computador, criando seus próprios programas e jogando spams na rede. Conseguiu se infiltrar na BBC, no Ministério da Defesa inglês e na Scotland Yard. Conseguiu até assumir por algum tempo o comando de um submarino nuclear britânico que patrulhava o Mar do Norte. Felizmente, Trinity era mais um curioso do que um gênio do mal da informática. Seu fascínio acabava assim que conseguia invadir um computador e descobria um acesso a seus segredos. Quando muito, permitia-se uma brincadeira de moleque do tipo configurar um computador de submarino para que ele convidasse o capitão a limpar a bunda quando este solicitava uma posição. Esse incidente provocara uma série de reuniões de emergência no Ministério da Defesa, e Trinity acabara entendendo que talvez não fosse uma boa idéia se gabar de seus conhecimentos numa época em que os governos não estavam brincando quando ameaçavam condenar os hackers a pesadas penas de prisão.