A técnica de que Trinity dispunha o obrigava a estacionar a caminhonete na Bergsgatan, ou numa rua próxima, e a muito custo calibrar seu equipamento até ele identificar a impressão digital representada pelo número do celular do procurador Richard Ekstrõm. Como Trinity não falava sueco, era obrigado a redirecionar as chamadas para outro celular, o de Praga, que se incumbia da escuta propriamente dita.
Durante cinco dias e cinco noites, um Praga de olhos cada vez mais fundos tinha escutado até a exaustão um número assustador de chamadas feitas para ou do Palácio da Polícia e nos prédios vizinhos. Ouviu fragmentos de investigações em andamento, gravou uma série de ligações contendo bobagens sem interesse. No quinto dia, tarde da noite, Trinity mandou um sinal que um mostrador digital identificou imediatamente como sendo o número do celular do procurador Ekstrõm. Praga bloqueou a antena parabólica na freqüência exata.
A técnica funcionava melhor para chamadas externas dirigidas a Ekstrõm. A parabólica de Trinity captou facilmente a busca do número de celular de Ekstrõm lançada aos céus da Suécia inteira.
Assim que Trinity começou a gravar as chamadas de Ekstrõm, conseguiu igualmente a impressão de sua voz, sobre a qual Praga pôde trabalhar.
Praga inseriu devagar a voz digitalizada de Ekstrõm num programa chamado VPRS, Voiceprint Recognition System. Em seguida, indicou uma dúzia de palavras empregadas com freqüência pelo procurador, como "combinado" ou "Salander". Assim que conseguiu reunir cinco exemplos de palavras diferentes, ele compilou o tempo necessário para pronunciá-la, sua altura e freqüência, a tônica final e mais uma dúzia de outros marcadores. Depois de obter, desse modo, uma representação gráfica, Praga passou a escutar também as ligações feitas pelo procurador Ekstrõm. Sua parabólica estava o tempo todo ligada, à espreita de uma chamada em que constasse exatamente o esquema gráfico de uma das palavras utilizadas com freqüência; elas eram doze no total. A técnica estava longe de ser perfeita, mas eles calculavam que cinqüenta por cento das ligações feitas por Ekstrõm pelo celular, dentro do Palácio da Polícia ou de algum local próximo, estavam sendo ouvidas e gravadas.
Infelizmente, a técnica tinha um sério inconveniente. Assim que o procurador Ekstrõm deixava o Palácio da Polícia, acabavam as possibilidades de escuta, a não ser que Trinity soubesse para onde ele ia e estacionasse a caminhonete nas proximidades.
Agora que dispunha de uma ordem vinda de cima, Torsten Edklinth podia criar uma unidade de intervenção, pequena sem dúvida, mas legítima. Selecionou a dedo quatro colaboradores, jovens talentos originários da polícia comum e recrutados pela Sapo havia pouco tempo. Dois haviam passado pela Brigada de Fraudes, um pela Brigada Criminal e outro havia cuidado de casos financeiros. Eles foram chamados à sala de Edklinth e informados sobre a natureza da missão e da necessidade de sigilo absoluto. Edklinth frisou que a investigação era um pedido expresso do primeiro-ministro. Rosa Figuerola era a chefe e conduzia os trabalhos com uma energia proporcional ao seu físico.
Mas a investigação avançava devagar, principalmente porque nenhum deles tinha muita certeza de quem era o alvo de suas pesquisas. Várias vezes, Edklinth e Figuerola pensaram em deter apenas Mârtensson, para interrogá-lo. Mas depois sempre optavam por esperar mais um pouco. Uma detenção tornaria pública toda a investigação.
Na terça-feira, porém, onze dias depois da conversa com o primeiro-ministro, Rosa Figuerola bateu à porta da sala de Edklinth.
— Acho que temos alguma coisa.
— Sente-se.
— Evert Gullberg.
— Sim?
— Um dos investigadores conversou com o Marcus Ackerman, que está chefiando a investigação sobre o assassinato do Zalachenko. Ackerman diz que a Sapo procurou a polícia de Gõteborg para informar sobre as cartas ameaçadoras de Gullberg duas horas depois do assassinato.
— Agiram rápido.
— E. Aliás, rápido demais. A Sapo passou para a polícia de Gõteborg, por fax, nove cartas cujo autor seria o Gullberg. Só tem um problema.
— Qual?
— Duas cartas eram endereçadas ao Ministério da Justiça: uma ao ministro da Justiça e outra ao ministro da Democracia.
— Sim, eu sei disso.
— Pois é, só que a carta para o ministro da Democracia foi registrada pelo ministério apenas no dia seguinte. Estava em outra leva.
Edklinth olhou fixamente para Rosa Figuerola. Pela primeira vez, temeu de fato que as suspeitas tivessem fundamento. Inflexível, Rosa prosseguiu:
— Em outras palavras, a Sapo mandou o fax de uma carta que ainda não tinha chegado ao destinatário.
— Meu Deus! — disse Edklinth.
— Foi um funcionário da Proteção à Pessoa que mandou o fax.
— Quem?
— Não acredito que ele tenha algo a ver com isso. Encontrou as cartas sobre sua mesa de manhã e, pouco depois do assassinato, pediram que ele contatasse a polícia de Gõteborg.
— Quem deu a ordem?
— O secretário do secretário-geral.
— Meu Deus, Rosa... Você percebe o que isso significa?
— Percebo.
— Significa que a Sapo está envolvida no assassinato de Zalachenko.
— Não. Significa, definitivamente, que algumas pessoas dentro da Sapo sabiam do assassinato antes de ele ser cometido. A questão é descobrir quem.
— O secretário-geral...
— Sim. Mas estou começando a achar que esse clube Zalachenko fica fora da casa.
— Como assim?
— O Mârtensson. Ele foi transferido do Serviço de Proteção à Pessoa e trabalha sozinho. Nós o mantivemos sob vigilância em tempo integral a semana toda. Até onde pudemos perceber, ele não teve contato com ninguém da casa. Recebe chamadas num celular que não conseguimos escutar. Não temos o número desse celular, mas de qualquer forma não é o dele. Ele se encontrou com um homem loiro que ainda não identificamos.
Edklinth franziu a testa. Nisso, Niklas Berglund bateu à porta. Era o colaborador da nova equipe de intervenção que tinha atuado em assuntos financeiros.
— Acho que descobri o Evert Gullberg — disse Berglund.
— Entre — disse Edklinth.
Berglund depositou uma fotografia amassada sobre a mesa. Edklinth e Figuerola observaram a foto. Os dois reconheceram imediatamente o lendário coronel espião Stig Wennerstrõm. Dois robustos policiais à paisana o conduziam através de uma porta.
— Essa foto, da editora Áhlén & Ákerlund, foi publicada na revista Se na primavera de 1964. Foi tirada durante o julgamento em que Wennerstrõm foi condenado à prisão perpétua.
— Ahã.
— Ao fundo, dá para ver três pessoas. À direita, o delegado Otto Danielsson, que foi quem prendeu o Wennerstrõm.
— Sim...
— Vejam o homem à esquerda, atrás do Danielsson.
Edklinth e Figuerola viram um homem alto, de bigode fino e chapéu. Parecia vagamente o escritor Dashiell Hammet.
— Comparem esse rosto com a foto de identificação do Gullberg. Ele tinha setenta anos quando tirou essa foto.
Edklinth franziu o cenho.
— Eu não me arriscaria a jurar que se trata da mesma pessoa...
— Mas eu sim — disse Berglund. — Vire a foto.
No verso, um carimbo indicava que a foto era propriedade da editora Ahlén & Akerlund e que o fotógrafo se chamava Julius Estholm. Havia um texto escrito a lápis. Stig Wennerstróm, ladeado por dois policiais, entrando no Tribunal de Instâncias de Estocolmo. Ao fundo, O. Danielsson, E. Gullberg e H. W. Francke.
— Evert Gullberg — disse Rosa Figuerola. — Da Sapo.
— Não — disse Berglund. — Do ponto de vista meramente técnico, ele não era. Pelo menos não quando essa foto foi tirada.
— Ah, é?
— A Sapo só seria criada quatro meses depois. Nessa foto, ele ainda era da polícia secreta do Estado.