Para Erika Berger, configuravam-se duas linhas de conduta.
Ela poderia ir falar com Borgsjó, pôr as cartas na mesa e mostrar a documentação, para que ele próprio concluísse que era preciso se demitir antes que a matéria fosse publicada.
Ou, caso ele resistisse, ela teria de convocar uma reunião extraordinária e urgente do conselho administrativo, pôr os membros a par da situação e exigir que o conselho administrativo o demitisse. Caso o conselho não quisesse seguir esse caminho, ela própria se veria obrigada a pedir imediatamente demissão do cargo de redatora-chefe do SMP.
Quando Erika chegou a esse ponto de suas reflexões, a água do banho ja tinha esfriado. Ela tomou uma ducha, enxugou-se e foi até o quarto vestir um roupão. Em seguida, pegou o celular e ligou para Mikael Blomkvist. Como não obtivesse resposta, desceu ao andar de baixo, preparou um café e, pela primeira vez desde que começara a trabalhar no SMP, foi olhar se, por acaso, não havia um filme decente na tevê que ela pudesse assistir para relaxar.
Ao passar diante da janela da sala, sentiu uma dor forte no pé, baixou os olhos e descobriu que estava sangrando abundantemente. Deu mais um passo e a dor transpassou-lhe o pé inteiro. Pulando num pé só, alcançou uma cadeira e se sentou. Ergueu o pé e viu, horrorizada, um estilhaço de vidro cravado em seu calcanhar. De início, sentiu que fraquejava. Então se recompôs, segurou o estilhaço e o extraiu. Doeu à beca e o sangue jorrou através do corte.
Ela abriu às pressas a gaveta da cômoda do hall de entrada, onde guardava seus lenços, luvas e gorros. Achou um lenço de seda e usou-o para enrolar o pé, apertando com força. Não foi suficiente, e ela reforçou com outra bandagem improvisada. A hemorragia conteve-se um pouco.
Olhou, estarrecida, para o caco de vidro ensangüentado. Como é que isso veio parar aqui? Então encontrou outros fragmentos de vidro no piso do hall. Que porra de... Levantou-se, deu uma olhada na sala e percebeu que a ampla janela panorâmica com vista para a bacia de Saltsjõn estava quebrada, e o chão repleto de estilhaços de vidro.
Recuou até a porta de entrada e calçou os sapatos que havia tirado ao entrar. Ou melhor, calçou um dos sapatos e enfiou os dedos do pé ferido no outro, e foi meio que saltitando até a sala para conferir o desastre.
Então viu o tijolo no meio da mesa.
Foi mancando até a porta do terraço e saiu para o pátio dos fundos.
Tinham pichado duas palavras na fachada, com letras de um metro de altura.
PUTA NOJENTA
Eram pouco mais de nove da noite quando Rosa Figuerola abriu a porta de seu carro para Mikael Blomkvist. Deu a volta no veículo e sentou-se no banco do motorista.
— Quer que eu o leve em casa ou prefere que eu o deixe em algum outro lugar?
O olhar de Mikael Blomkvist estava sem expressão.
— Para ser bem sincero... nem sei direito onde estou. Essa foi a primeira vez que chantageei um primeiro-ministro.
Rosa Figuerola riu muito.
— Você até que administrou muito bem suas cartadas — disse ela. — Eu não sabia que você tinha talento para o pôquer de blefe.
— Cada palavra minha foi sincera.
— Sim, o que eu quis dizer é que você fingiu saber muito mais do que na verdade sabe. Percebi isso no momento em que entendi como você me identificou.
Mikael voltou a cabeça e olhou para o perfil dela.
— Você anotou o número da placa do meu carro quando eu estava estacionada na ladeira em frente à sua casa.
— Por que não disse nada?
Ela lhe lançou um breve olhar e virou na Grev Turegatan.
— São as regras do jogo. Eu não devia ter ficado ali. Mas foi o único lugar onde consegui estacionar.
— Você anda superatento a tudo que se passa à sua volta, ou estou enganada?
— Você estava com um mapa no banco da frente e falava ao telefone. Anotei o número da placa e apenas verifiquei por desencargo de consciência. Verifico todos os carros que me chamam a atenção. Em geral não dá em nada. No seu caso, descobri que trabalhava na Sapo.
— Eu estava vigiando o Mârtensson. Depois descobri que você também o vigiava através da Susanne Linder, da Milton Security.
— O Armanskij a encarregou de ficar de olho em tudo o que acontece em torno do meu apartamento.
— E como a vi entrando no seu prédio, imagino que o Armanskij tenha instalado algum tipo de vigilância oculta na sua casa.
— Exato. Temos um vídeo excelente de quando eles entram lá e revistam a minha papelada. O Mârtensson tinha com ele uma fotocopiadora portátil. Vocês identificaram o ajudante do Mârtensson?
— Ele não tem a menor importância. É um chaveiro com passado criminoso, que provavelmente foi pago para arrombar a sua porta.
— O nome dele?
— Fonte protegida?
— É evidente.
— Lars Faulsson. Quarenta e sete anos. Conhecido como Falun. Foi condenado por arrombamento de cofre-forte nos anos 1980, mais outras coi-sinhas. Tem uma loja em Norrtull.
— Obrigado.
— Mas vamos deixar os segredos para amanhã.
A reunião terminara com um acordo firmado entre eles, estabelecendo que Mikael Blomkvist iria no dia seguinte à Proteção à Constituição para dar início a um intercâmbio de informações. Mikael refletiu. Estavam passando pela praça de Sergelstorg.
— Sabe o que mais? Estou com uma fome e tanto. Almocei lá pelas duas horas e estava pretendendo cozinhar um macarrão ao chegar em casa, quando você me deteve. E você, já comeu?
— Já faz um tempinho.
— Você não nos levaria a um restaurantezinho que sirva algo comível?
— Toda comida é comível. Ele olhou de lado para ela.
— Achei que você fosse viciada em dietas.
— Não, sou viciada em musculação. Quem se exercita pode comer o que quiser. Nos limites do razoável, claro.
Ela entrou no viaduto de Klaraberg e considerou as opções. Em vez de ir na direção de Sõdermalm, seguiu reto rumo a Kungsholmen.
— Não sei como são os restaurantes do Sõder, mas conheço um, bósnio, na Fridhemsplan. Serve uns bórek fabulosos.
— Para mim está ótimo — disse Mikael Blomkvist.
Lisbeth Salander digitava seu relato letra por letra. Trabalhava em média cinco horas por dia. Expressava-se com muita precisão. Também tomava o cuidado de omitir qualquer detalhe que pudesse ser usado contra ela.
O fato de estar trancada a chave se transformara numa vantagem. Podia trabalhar assim que ficava sozinha no quarto, e o tilintar do molho de chaves ou a chave sendo introduzida na fechadura sempre a alertava quando tinha de dar sumiço no computador de mão.
[Eu já estava quase trancando a casa de Bjurman, em Stallarholmen, quando Carl-Magnus Lundin e Benny Nieminen chegaram nas suas motos. Corno fazia algum tempo que vinham me procurando e não me encontravam, p0r ordem de Zalachenko/Niedermann, ficaram surpresos de me ver ali. Maggi Lundin desceu da moto dizendo que "não seria nada mau essa sapatão dar urna provada num pinto". Lundin e Nieminen estavam tão ameaçadores que fuj obrigada a me defender. Deixei o local na moto de Lundin, que abandonei mais tarde junto ao Parque de Exposições de Alvsjõ.]
Ela releu o trecho e meneou a cabeça em sinal de aprovação. Não havia motivo para contar que Magge Lundin também a chamara de puta nojenta e que então ela se abaixara para apanhar a Wanad P-83 de Benny Nieminen e castigara Lundin baleando-o no pé. Os tiras decerto poderiam imaginar essa parte, sozinhos, mas cabia a eles provar como ela tinha feito. Não pretendia facilitar a tarefa deles confessando algo que a levaria à prisão por violências agravadas.
O texto já tinha trinta e três páginas e estava chegando ao fim. Em certos trechos ela era especialmente parcimoniosa nos detalhes, e tomava o maior cuidado para nunca tentar introduzir provas com o objetivo apenas de confirmar várias de suas afirmações. Chegou inclusive a ocultar certas provas evidentes, preferindo deixar que os fatos se encadeassem naturalmente no texto.