Refletiu um instante, então rolou a tela para cima e releu os trechos em que relatava o estupro violento e sádico que sofrerá do Dr. Nils Bjurman. Era o trecho em que ela mais tinha se demorado e um dos poucos que ela refizera várias vezes antes de se dar por satisfeita. Contava de maneira objetiva como ele a espancara, jogara de bruços na cama, algemara e amordaçara sua boca com fita adesiva. Relatou então que durante a noite toda ele a sujeitara a diversos atos sexuais violentos, incluindo penetrações anais e orais. Contava que em dado momento do estupro ele envolvera seu pescoço com a própria camiseta dela e a estrangulara por um período tão longo que ela chegou a perder momentaneamente os sentidos. Em seguida, descrevia em poucas linhas os apetrechos que ele utilizara no estupro, um chicote pequeno, uma bijuteria anal, um pênis artificial enorme e pinças, que ele aplicara em seus mamilos.
Lisbeth franziu a testa e examinou o texto. Por fim, pegou a canetinha digital e acrescentou-lhe mais algumas linhas.
[Em dado momento, quando eu ainda estava amordaçada, Bjurman comentou o fato de eu ter algumas tatuagens e piercings, inclusive uma argola no mamilo esquerdo. Perguntou se eu gostaria de fazer outro piercing e saiu do quarto por alguns instantes. Retornou com um alfinete, que ele espetou no meu mamilo direito.]
Depois de reler o novo parágrafo, ela balançou a cabeça. O tom burocrático dava ao texto um caráter tão surrealista que ele mais parecia uma absurda fabulação.
A história simplesmente não era crível.
E era exatamente essa a intenção de Lisbeth Salander.
Nisso, escutou o tilintar do molho de chaves do vigia da Securitas. Desligou o computador no ato e enfiou-o no buraco atrás do painel da cabeceira. Era Annika Giannini. Franziu o cenho. Eram mais de nove da noite e Giannini não costumava aparecer assim tão tarde.
— Olá, Lisbeth.
— Olá.
— Como você está?
— Ainda não estou pronta. Annika Giannini suspirou.
— Lisbeth... marcaram o julgamento para 13 de julho.
— Está bem.
— Não, não está bem. O tempo está voando e você se recusa a confiar em mim. Estou começando a achar que cometi um erro enorme ao aceitar ser sua advogada. Se a gente quiser ter alguma chance, você tem de confiar em mim. Nós precisamos trabalhar juntas.
Lisbeth observou Annika Giannini por um bom tempo. Por fim, inclinou a cabeça para trás e fitou o teto.
— Agora sei o que a gente vai fazer — disse. — Entendi o plano de Mikael. E ele está certo.
— Não tenho tanta certeza disso — disse Annika.
— Mas eu tenho.
— A polícia quer te interrogar mais uma vez. Um tal de Hans Faste, de Estocolmo.
— Ele pode me interrogar. Não vou dizer uma só palavra.
— Você precisa dar alguma explicação.
Lisbeth lançou um olhar duro para Annika Giannini.
— Repito. Não vamos dizer uma só palavra à polícia. Quando chegarmos ao tribunal, o procurador não pode ter uma sílaba sequer de interrogatório nenhum para se apoiar. Eles só vão ter o relato que eu estou escrevendo e que em boa parte vai parecer exagerado. E só o terão poucos dias antes do julgamento.
— E quando é que você vai se sentar, de caneta na mão, para redigir esse relato?
— Você vai receber daqui a alguns dias. Mas só vai ser entregue ao procurador poucos dias antes do julgamento.
Annika Giannini mostrou um ar cético. Lisbeth dirigiu-lhe de repente um cauteloso sorriso enviesado.
— Você fala em confiança... Será que você pode confiar em mim?
— Claro.
— Certo, você pode me trazer ilegalmente um computador de mão, para eu poder contatar umas pessoas pela internet?
— Não. E claro que não. Se descobrissem, eu seria processada e perderia minha licença de advogada.
— Mas se outra pessoa me fornecesse um computador, você avisaria a polícia?
Annika ergueu as sobrancelhas.
— Se eu não estiver sabendo...
— Mas se você estivesse sabendo, o que faria? Annika refletiu demoradamente.
— Eu fecharia os olhos. Por quê?
— Esse computador hipotético vai lhe enviar em breve um e-mail hipotético. Depois que você tiver lido, quero que venha me ver.
— Lisbeth...
— Espere. Veja bem o que está acontecendo. O procurador está jogando com cartas marcadas. O que quer que eu faça, estou em posição de inferioridade, e o objetivo desse processo é me internar na psiquiatria.
— Eu sei.
— Se eu quiser sobreviver, também preciso usar métodos ilícitos.
Annika Giannini acabou concordando com a cabeça.
— Quando você veio me ver pela primeira vez, trouxe um recado do Mikael Blomkvist. Ele dizia que tinha te contado praticamente tudo, tirando alguns detalhes. Um desses detalhes são uns talentos que eu tenho, que ele descobriu quando estávamos em Hedestad.
— Sei.
— Ele estava se referindo ao fato de eu ter habilidades incríveis em computação. Sou tão boa nisso que posso ler e copiar o conteúdo do computador do procurador Ekstrõm.
Annika Giannini empalideceu.
— Você não pode se envolver com isso. Portanto, você não pode usar esse material no julgamento — disse Lisbeth.
— De fato.
— Portanto, você nem sabe que ele existe.
— Certo.
— Em compensação, outra pessoa, digamos o seu irmão, pode publicar trechos desse material. Você precisa levar isso em conta ao montar nossa estratégia para o julgamento.
— Entendo.
— Annika, vai ganhar esse julgamento quem melhor souber utilizar a força.
— Sei disso.
— Estou feliz por você ser minha advogada. Confio em você e preciso da sua ajuda.
— Humm.
— Mas se você se opuser a que eu também lance mão de métodos pouco éticos, nós vamos perder o processo.
— Sim.
— Por isso, preciso saber agora de você. Senão vou ter que lhe agradecer I procurar outro advogado.
— Lisbeth, eu não posso infringir a lei.
— Não se trata de infringir a lei. Mas de fechar os olhos por eu estar infringindo. Você seria capaz disso?
Lisbeth Salander esperou pacientemente por quase um minuto até que Annika Giannini assentisse com a cabeça.
— Muito bem. Deixe eu lhe contar, em linhas gerais, o meu relato. Conversaram por duas horas.
Rosa Figuerola estava certa. Os bõrek do restaurante bósnio eram sensacionais. Mikael Blomkvist lançou-lhe um olhar de esguelha quando ela voltou do toalete. Ela se movia com a graça de uma bailarina clássica, mas tinha um corpo que... Mikael não conseguia evitar, estava fascinado. Refreou o impulso de estender a mão para apalpar os músculos de suas pernas.
— Há quanto tempo você faz musculação? — ele perguntou.
— Desde a adolescência.
— E você malha quantas horas por semana?
— Duas horas por dia. Às vezes três.
— Por quê? Quero dizer, eu sei por que as pessoas malham, mas...
— Você acha um exagero.
— Não sei direito o que eu acho.
Ela sorriu, aparentemente nem um pouco irritada com suas perguntas.
— Talvez você se incomode de ver uma mulher musculosa e acha que isso não é muito feminino nem erótico.
— Não. Nada disso. Eu diria que fica bem em você. Você é tremendamente sexy.
Ela riu de novo.
— Ando diminuindo o ritmo. Há dez anos, eu praticava um bodyhuüding puro e pesado. Era legal. Mas agora só preciso cuidar para que meus músculos não se transformem em gordura e eu fique toda flácida. Assim, só puxo um pouco de ferro uma vez por semana, e o resto do tempo eu como, nado, jogo peteca, esse tipo de coisa. É mais exercício do que treino enlouquecido.
— Já não é pouca coisa!
— Faço isso porque acho gostoso. É um fenômeno bem comum em quem se dedica a fundo. O corpo produz uma substância relaxante que deixa a gente dependente. Depois de certo tempo, a gente tem sintomas de abstinência se não corre todo dia. Quando a gente dá tudo de si, é como uma injeção de bem-estar. Quase tão bacana como fazer amor.