— Tem razão. Desculpe.
— Não se desculpe. Todos nós sabemos que quando você fica obcecado com um caso, o resto deixa de existir. Mas com a gente não funciona assim. Não funciona comigo. A Erika Berger podia contar comigo. Eu tenho o Henry, e ele é bárbaro, mas está trabalhando na sua matéria tanto quanto você. Mesmo contando com você, ainda faltam duas pessoas na redação.
— Certo.
— E eu não sou a Erika Berger. Ela tinha uma quilometragem que eu não tenho. Ainda estou aprendendo. A Monika Nilsson está se matando de trabalhar. E a Lottie Karim também. Só que ninguém tem tempo nem de parar para pensar.
— Tudo isso é passageiro. Assim que o julgamento começar...
— Não, Mikael. Não vai passar. Quando o julgamento começar, vai ser um inferno. Lembre-se do caso Wennerstrõm. O que vai acontecer é que não vamos te ver por uns dois meses, enquanto você estiver se exibindo no horário nobre da tevê.
Mikael suspirou. Balançou a cabeça devagar.
— O que você sugere?
— Se quisermos dar conta da Millennium desse outono, vamos precisar contratar pelo menos duas pessoas, talvez mais. Não temos condições de fazer o que estamos pretendendo e...
— E?
— E nem tenho certeza se quero mesmo fazer isso.
— Entendo.
— Estou falando sério. Eu sou uma ótima assistente editorial, e as coisas rolavam numa boa com a Erika na chefia. Combinamos de fazer um teste no verão... Bem, a gente tentou. Não sou uma boa redatora-chefe.
— Isso é bobagem — disse Henry Cortez. Malu meneou a cabeça.
— Certo — disse Mikael. — Estou entendendo. Mas considere que estamos passando por uma situação atípica.
Malu sorriu para ele.
— Você deve encarar isso como a reclamação de uma funcionária — disse ela.
A unidade de intervenção da Brigada de Proteção à Constituição passou a sexta-feira tentando elucidar a informação fornecida por Mikael Blomkvist. Dois colaboradores se instalaram num escritório provisório na Fridhemsplan, e ali ficou centralizada toda a documentação. Era pouco prático, já que todo o sistema de computação ficava no Palácio da Polícia e os colaboradores, portanto, tinham de ir e vir todos os dias. Mesmo sendo um trajeto de apenas minutos, era incômodo. Ao meio-dia, já dispunham de uma ampla documentação mostrando que tanto Fredrik Clinton como Hans von Rottinger tinham sido ligados à Sapo nos anos 1960 e início dos 1970.
Rottinger era originário do serviço de informações militares e trabalhara vários anos na agência coordenando Defesa e Segurança. Fredrik Clinton tinha passado pela Força Aérea e começara a trabalhar no controle de pessoal da Sapo em 1967.
Ambos, porém, haviam saído da Sapo no início dos anos 1970; Clinton em 1971 e Rottinger em 1973. Clinton voltara para a vida civil como consultor e Rottinger tinha sido contratado para fazer investigações pela Agência Internacional de Energia Atômica. Fora baseado em Londres.
A tarde já ia longe quando Rosa Figuerola foi bater à porta de Edklinth para contar que tudo indicava que as carreiras de Clinton e Rottinger, desde que haviam deixado a Sapo, tinham sido forjadas. A carreira de Clinton era difícil de rastrear. Trabalhar como consultor para o setor industrial pode significar praticamente qualquer coisa. A pessoa não tem obrigação de prestar contas de suas atividades ao Estado. As declarações de renda de Clinton mostravam que ele ganhava muito dinheiro; infelizmente, sua clientela parecia ser formada, sobretudo, por empresas anônimas sediadas na Suíça e em países similares. Portanto, não era muito fácil provar que tudo aquilo não passava de fachada.
Rottinger, em compensação, nunca pusera os pés no escritório de Londres onde supostamente trabalhava. Em 1973, na verdade o prédio onde ficava o tal escritório havia sido demolido e substituído por uma extensão da King's Cross Station. Era óbvio que alguém se enganara redondamente ao criar aquela lenda. Durante o dia, a equipe de Figuerola conversou com vários colaboradores aposentados da Agência Internacional de Energia Atômica. Nenhum deles sequer ouvira falar em Rottinger.
— Já temos as informações — disse Edklinth. — Agora só nos resta descobrir quais as reais atividades desses senhores.
Rosa Figuerola concordou com a cabeça.
— E quanto ao Blomkvist, o que a gente faz?
— Como assim?
— Nós prometemos mantê-lo informado do que descobríssemos sobre Clinton e Rottinger.
Edklinth refletiu.
— Está certo. E ele mesmo vai acabar descobrindo se continuar vasculhando. Mais vale mantermos boas relações com ele. Você conta para o Blomkvist. Mas use a cabeça.
Rosa Figuerola prometeu. Conversaram alguns minutos sobre a agenda do fim de semana. Dois colaboradores de Rosa iam continuar trabalhando. Ela estaria de folga.
Ela bateu seu ponto e foi até a academia da Praça Sankt Erik, onde passou duas horas se recuperando desenfreadamente do treino que havia perdido. Ao voltar para casa por volta das sete da noite, tomou um banho, preparou uma refeição leve e ligou a tevê para ver o noticiário. Por voltas das sete e meia, já estava zanzando à toa e calçou o tênis de corrida. Deteve-se à porta de casa e pensou um pouco. Maldito Blomkvist! Pegou o celular e ligou para o de Mikael.
— Descobrimos umas duas, três coisas sobre o Rottinger e o Clinton.
— Fale — disse Mikael.
— Se você vier me visitar eu te conto.
— Humm — fez Mikael.
— Acabei de pôr o tênis de corrida para ir gastar meu excesso de energia — disse Rosa Figuerola. — Saio ou te espero?
— Está bem para você se eu chegar depois das nove?
— Está ótimo.
Por volta das oito da noite de sexta-feira, o Dr. Anders Jonasson foi ver Lisbeth Salander. Ele se sentou na poltrona dos visitantes e recostou-se.
— Vai me examinar? — perguntou Lisbeth Salander.
— Não. Hoje não.
— Que maravilha!
— Fizemos uma avaliação do seu estado hoje e informamos o procurador de que estamos prontos para lhe dar alta.
— Entendo.
— Eles queriam transferir você para a casa de detenção de Gõteborg esta noite mesmo.
— Tão rápido?
Ele assentiu com a cabeça.
— Parece que Estocolmo está pressionando. Eu disse que ainda tinha uns testes para fazer com você amanhã e que não ia liberá-la antes de domingo.
— Por quê?
— Não sei. A pressa deles me irritou.
Lisbeth Salander sorriu de verdade. Ela sem dúvida conseguiria transformar o Dr. Anders Jonasson num bom anarquista, se lhe dessem alguns anos. Pelo menos tendências à desobediência civil ele tinha.
— Fredrik Clinton — disse Mikael Blomkvist, olhos fixos no teto acima da cama de Rosa Figuerola.
— Acenda esse cigarro e eu apago ele no seu umbigo — disse Rosa. Mikael olhou, surpreso, para o cigarro que acabava de tirar do bolso do paletó.
— Desculpe — disse ele. — Você me empresta a sua sacada?
— Só se você escovar os dentes depois.
Ele concordou balançando a cabeça e se enrolou num lençol. Ela o seguiu até a cozinha e encheu um copo grande com água fria. Apoiou-se no vão da porta da sacada.
— Fredrik Clinton?
— Ele ainda está vivo. É o elo com o passado.
— Ele está morrendo. Precisa de um rim, e passa a maior parte do tempo fazendo diálise ou algum outro tratamento.
— Mas está vivo. Poderíamos entrar em contato com ele e perguntar diretamente. Ele talvez queira falar.
— Não — disse Rosa. — Em primeiro lugar, trata-se de um inquérito preliminar e a polícia é que está investigando. Nós não existimos nessa história. Em segundo lugar, como foi combinado com Edklinth, você está recebendo as informações, mas se comprometeu a não atrapalhar a investigação.
Mikael olhou para ela e sorriu. Apagou o cigarro.
— Epa — disse ele. — Olha a Sapo puxando a coleira... De repente, ela pareceu preocupada.