Ele não se dá conta do quanto é estúpido voltar aqui. Não consegue deixar de vir.
Ele estava agachado e tentando espiar, por uma fresta entre as cortinas, dentro de uma saleta contígua à sala de estar. Então subiu ao terraço e espreitou pelos vãos das persianas fechadas, ao lado da janela panorâmica ainda tapada com o compensado.
De repente, Susanne Linder sorriu.
Esgueirou-se pelo pátio até a esquina da casa enquanto ele estava de costas para ela. Escondeu-se atrás de umas groselheiras e esperou. Conseguia vê-lo através dos ramos. De onde estava, Fredriksson devia estar enxergando o hall de entrada e boa parte da cozinha. Ele topara com algo interessante para olhar e dez minutos se passaram antes que se pusesse de novo em movimento. Aproximou-se de Susanne Linder.
Quando ele estava prestes a virar a esquina da casa, passando na frente dela, Susanne Linder se ergueu e falou baixinho:
— Oi, Fredriksson!
Ele estacou e virou-se para ela.
Ela viu seus olhos cintilando no escuro. Não conseguia enxergar seu rosto, mas podia ouvir que o choque o havia feito perder o fôlego.
— Existem duas maneiras de lidar com isso, uma simples e uma complicada — disse ela. —Vamos até o seu carro e...
Ele deu meia-volta e começou a correr.
Susanne Linder ergueu o cassetete telescópico e desfechou um golpe doloroso e arrasador na parte externa de seu joelho esquerdo.
Ele caiu, produzindo um som abafado.
Ela ergueu o cassetete para bater mais uma vez, mas se conteve. Podia sentir os olhos de Dragan Armanskij em sua nuca.
Inclinou-se e o fez ficar de bruços, então enfiou-lhe um joelho na parte inferior das costas. Apanhou a mão direita dele e torceu-lhe o braço por trás, algemando-o. Ele estava fraco e não opôs nenhuma resistência.
Erika Berger apagou a luz da sala e subiu a escada mancando. Não precisava mais das muletas, mas a planta do pé ainda doía quando jogava seu peso em cima. Lars Beckman apagou a luz da cozinha e seguiu os passos da mulher. Nunca tinha visto Erika tão mal. Nada do que ele dizia parecia acalmá-la nem atenuava sua angústia.
Ela se despiu e deitou-se na cama, de costas para ele.
— Não é nada com você, Lars — disse ela, quando o escutou se deitar.
— Você realmente não parece estar bem — disse ele. — Quero que fique alguns dias em casa.
Passou o braço em volta dos ombros dela. Ela não tentou rechaçá-lo, mas estava totalmente passiva. Ele se inclinou, beijou-lhe o pescoço com suavidade e a abraçou.
— Não há nada que você possa dizer ou fazer para melhorar a situação. Eu sei que estou precisando de um tempo. Me sinto como num trem expresso que acabei de perceber que vai sair dos trilhos.
— A gente podia passear de barco por uns dias. Deixar tudo isso para lá e fazer uma parada.
— Não. Eu não quero deixar tudo isso para lá.
Virou-se para ele.
— O pior que eu poderia fazer agora seria fugir, aí é que está. Vou resolver esse problema. E depois a gente faz o passeio.
— Tudo bem — disse Lars. — Só acho que não posso ser de grande ajuda para você.
Ela quase sorriu.
— É verdade. Mas obrigada por estar aqui. Amo você muito, muito, você sabe disso.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Não consigo acreditar que é o Peter Fredriksson — disse Erika Berger. — Nunca senti nenhuma hostilidade da parte dele.
Ao ver as luzes do térreo se apagarem, Susanne Linder se perguntou se deveria bater à porta de Erika. Olhou para Peter Fredriksson. Ele não dissera uma só palavra. Estava totalmente passivo. Ela refletiu alguns instantes antes de se decidir.
Inclinou-se, segurou as algemas, puxou-o para que ele ficasse em pé e encostou-o na parede da casa.
— Você consegue ficar de pé? — perguntou. Ele não respondeu.
— Bem, então vamos simplificar as coisas. Se você esboçar qualquer tipo de resistência, vai receber o mesmo tratamento na perna direita. E, se insistir, eu arrebento seus braços. Está me entendendo?
Percebeu que ele respirava depressa. Medo?
Empurrou-o à sua frente para a rua, até o carro dele, a três quarteirões de distância. Ele mancava. Ela o amparava. Ao chegarem ao carro, cruzaram com um homem que fazia seu passeio noturno com o cachorro. Ele parou e fitou as algemas de Peter Fredriksson.
— Polícia — disse Susanne Linder com voz decidida. — Vá para casa. Ela o acomodou no banco traseiro e o levou para a casa dele em Fisksátra.
Era meia-noite e meia e eles não cruzaram com ninguém na frente do prédio. Susanne Linder apanhou suas chaves e o fez subir a escada até seu apartamento, no segundo andar.
— Você não pode entrar na minha casa — disse Peter Fredriksson.
Eram suas primeiras palavras desde que ela o tinha algemado.
— Você não tem o direito. Precisa de um mandato...
— Eu não sou tira — ela sussurrou. Ele olhou para ela com ar cético.
Ela o agarrou pela camisa e o empurrou para a sala, onde o deixou cair no sofá. Era um apartamento de três cômodos, limpo e bem-arrumado. O quarto ficava à esquerda, a cozinha do outro lado do hall de entrada, o pequeno escritório junto à sala.
Ela deu uma olhada no escritório e soltou um suspiro de alívio. A arma do crime! Avistou imediatamente fotos do álbum de Erika Berger espalhadas sobre a mesa de trabalho, ao lado do computador. Ele afixara umas trinta fotos na parede. Susanne Linder contemplou a exposição de sobrancelhas erguidas. Erika Berger era superbonita. E a vida sexual dela parecia ser mais divertida que a sua.
Escutou Peter Fredriksson se mexendo e voltou para a sala a fim de pegá-lo. Deu-lhe uma cassetada, puxou-o até o escritório e o fez sentar-se no chão.
— Não se mexa — disse.
Foi até a cozinha e pegou uma sacola de papel da Konsum. A seguir foi retirando as fotos da parede, uma por uma. Achou o álbum de fotos vazio e os diários íntimos de Erika Berger.
— Cadê o vídeo? — perguntou.
Peter Fredriksson não respondeu. Susanne Linder foi até a sala e ligou a tevê. Havia uma fita dentro do aparelho, mas precisou tatear alguns instantes até descobrir o botão no controle remoto.
Ejetou a fita, e então ficou um bom tempo conferindo se ele não tinha feito alguma cópia.
Achou as cartas de amor da adolescência de Erika e o relatório sobre Borgsjõ. Notou que ele tinha um escâner Microtek conectado a um computador IBM. Ergueu a tampa do escâner e encontrou uma foto esquecida que mostrava Erika Berger numa festa do Club Xtreme no Ano-Novo de 1986, a julgar por uma bandeirola pendurada numa parede.
Ligou o computador e se deu conta de que ele estava protegido por uma senha.
— Qual é a senha? — ela perguntou.
Peter Fredriksson permaneceu sentado no chão, teimosamente imóvel e recusando-se a falar.
De repente, Susanne Linder sentiu-se muito calma. Sabia que, tecnicamente falando, cometera uma série de infrações no decorrer da noite, incluindo o que se poderia qualificar como constrangimento, ou mesmo seqüestro agravado. Não estava nem aí. Pelo contrário, estava até satisfeita.
Passado algum tempo, acabou dando de ombros e pegou no bolso seu canivete suíço. Desligou todos os fios do computador, virou a parte traseira da CPU para a frente e usou a chave cruciforme para abri-lo. Levou breves quinze minutos para desmontar o computador e tirar dali o disco rígido.
Olhou em volta. Tinha pegado tudo, mas por segurança examinou minuciosamente todas as gavetas da mesa, as pilhas de papel e as prateleiras. De súbito, seu olhar bateu num antigo anuário de escola deixado na beirada da janela. Constatou que era o anuário do liceu de Djursholm, 1978. Erika Berger não pertencera à nata de Djursholm...? Abriu o anuário e percorreu, uma a uma, todas as turmas do último ano.