Às duas da tarde, desceu ao departamento pessoal para firmar um contrato. Depois subiu até a editoria de Cultura e pediu para falar com o chefe, Sebastian Strandlund, e com a jornalista Eva Carlsson.
— Pelo que percebi, a Eva Carlsson é vista como uma jornalista talentosa e competente aqui no Cultura.
— É verdade — disse Strandlund.
— E nas solicitações de verba desses dois últimos anos vocês pediram que a área fosse reforçada com pelo menos mais duas pessoas.
— Sim.
— Eva, levando em conta os e-mails que você recebeu, talvez surjam uns boatos desagradáveis se eu lhe oferecer um cargo fixo. Você está interessada assim mesmo?
— Mas é claro.
— Nesse caso, a minha última decisão aqui no SMP vai ser assinar essa contratação.
— Última?
— E uma longa história. Vou embora hoje. Pediria para vocês guardarem sigilo' por mais uma horinha.
— O que...
— Tenho uma reunião daqui a um minuto.
Erika Berger assinou o contrato e o passou para Eva Carlsson, do outro lado da mesa.
— Boa sorte — disse ela, sorrindo.
— O homem desconhecido e já de uma certa idade que no sábado participou da reunião na sala do Ekstrõm se chama Georg Nystrõm. Ele é delegado — disse Rosa Figuerola, dispondo as fotos sobre a mesa diante de Torsten Edklinth.
— Delegado — resmungou Edklinth.
— O Stefan o identificou ontem à noite. Ele chegou de carro ao apartamento da Artillerigatan.
— O que se sabe sobre ele?
— Ele era da polícia comum e trabalha na Sapo desde 1983. Desde 1996, tem um cargo de confiança como investigador. Ele cuida dos controles internos e da avaliação dos casos arquivados da Sapo.
— Muito bem.
— De sábado para cá, um total de seis pessoas com algum interesse passou por aquela porta. Além de Jonas Sandberg e Georg Nystrõm, Fredrik Clinton está no prédio. De manhã, ele foi para a diálise de ambulância.
— Quem são os outros?
— Um tal de Otto Hallberg. Ele trabalhou na Sapo nos anos 1980, mas na verdade pertence ao estado-maior da Defesa. Atua na Marinha e com informações militares.
— Ahã. Por que será que eu não estou surpreso? Rosa Figuerola mostrou mais uma foto.
— Este aqui ainda não foi identificado. Ele almoçou com o Hallberg. Vamos tentar identificá-lo quando ele voltar para casa hoje à noite.
— Certo.
— Mas o mais interessante é este cara aqui. Colocou outra foto sobre a mesa.
— Esse eu reconheço — disse Edklinth.
— Ele se chama Wadensjõõ.
— Isso. Há uns quinze anos, ele trabalhava para a Brigada Antiterrorista. Um general de escritório. Era um dos candidatos ao cargo de chefe supremo aqui da Casa. Não sei que fim levou.
— Ele se demitiu em 1991. Adivinhe com quem ele almoçou uma hora atrás?
Colocou a última foto sobre a mesa.
— O secretário-geral Albert Shenke e o chefe do orçamento, Gustav Atterbom. Quero esses sujeitos vigiados dia e noite. Quero saber exatamente com quem eles se encontram.
— Impossível. Só tenho quatro homens. E alguém precisa trabalhar na documentação.
Edklinth meneou a cabeça e beliscou, pensativo, o lábio inferior. Passados alguns instantes, voltou a olhar para Rosa Figuerola.
— Precisamos de mais gente — disse ele. — Você acha que poderia contatar discretamente o inspetor Jan Bublanski e perguntar se ele aceitaria jantar comigo hoje, depois do expediente? Lá pelas sete horas, digamos.
Edklinth pegou o telefone e discou um número de cabeça.
— Oi, Armanskij. É o Edklinth. Queria retribuir aquele jantar simpático que você me ofereceu outro dia... Não, eu insisto. Lá pelas sete horas está bem para você?
Lisbeth Salander passou a noite na casa de detenção de Kronoberg, numa cela de mais ou menos quatro metros por quatro. A mobília era bastante modesta. Adormeceu cinco minutos depois de trancarem sua porta e, obedecendo ao fisioterapeuta do Sahlgrenska, acordou cedo na segunda--feira para fazer os exercícios de alongamento recomendados. Depois disso, tomou o café da manhã e ficou sentada em silêncio em seu catre, fitando um ponto à frente.
Às nove e meia, foi levada para uma sala de interrogatório na outra extremidade do corredor. O guarda era um homem idoso, baixinho e careca, de rosto redondo e óculos com armação de tartaruga. Tratou-a com correção e complacência.
Annika Giannini cumprimentou-a gentilmente. Lisbeth ignorou Hans Faste. Depois, encontrou-se pela primeira vez com o procurador Richard Ekstrõm, e passou a meia hora seguinte sentada numa cadeira fitando teimosamente um ponto na parede, pouco acima da cabeça de Ekstrõm. Ng0 pronunciou uma palavra sequer e não moveu nenhum músculo.
Às dez horas, Ekstrõm interrompeu o interrogatório fracassado. Estava irritado por não ter conseguido arrancar dela uma resposta sequer. Pela primeira vez, teve alguma dúvida ao observar Lisbeth Salander. Como é que aquela jovem miudinha, com jeito de boneca, tinha sido capaz de derrubar Magm Lundin e Benny Nieminen em Stallarholmen? O tribunal estaria preparado para aceitar essa versão, mesmo que ele apresentasse provas convincentes?
Ao meio-dia, serviram a Lisbeth um almoço leve, e ela gastou a hora seguinte resolvendo umas equações de cabeça. Concentrou-se no capítulo "Astronomia esférica" de um livro que tinha lido dois anos antes.
Às duas e meia, foi novamente levada para a sala de interrogatório. Dessa vez, o guarda era uma mulher bastante jovem. A sala estava vazia. Ela se sentou numa cadeira e continuou matutando sobre uma equação particularmente árdua.
Passados dez minutos, a porta se abriu.
— Bom dia, Lisbeth — cumprimentou-a cordialmente Peter Teleborian. Ele sorriu. Lisbeth Salander ficou gelada. Os componentes da equação, que ela edificara no ar à sua frente, desabaram no chão. Ela ouviu os números e os signos quicarem e tilintarem como se fossem de fato caquinhos reais.
Peter Teleborian ficou parado, observando-a, por um minuto e então se sentou diante dela. Ela continuou olhando para a parede.
Passado algum tempo, ela moveu os olhos e o encarou.
— Lamento que você esteja passando por essa situação — disse Peter Teleborian. — Vou fazer o possível para tentar te ajudar. Espero que a gente consiga estabelecer uma relação de confiança.
Lisbeth examinava cada centímetro do sujeito sentado diante dela. O cabelo desalinhado. A barba. O pequeno espaço entre os dentes da frente. Os lábios finos. O paletó marrom. A camisa de gola aberta. Escutava sua voz doce e traiçoeiramente amigável.
— Também espero poder ajudar mais do que na última vez que nos encontramos.
Ele colocou um bloco de anotações e uma caneta na mesa à sua frente. Lisbeth baixou os olhos e contemplou a caneta. Um comprido cilindro prateado e pontudo.
Análise das conseqüências.
Refreou o impulso de estender a mão e se apoderar da caneta.
Seu olhar se voltou para o dedo mínimo da mão esquerda de Teleborian percebeu um risco fino e branco no lugar em que, quinze anos antes, ela cravara os dentes e cerrara o maxilar com tanta força que quase cortara o dedo fora. Tinha sido necessário que três enfermeiros se juntassem para segurá-la e abrir à força seu maxilar.
Naquela época, eu era uma menininha apavorada que mal entrara na adolescência. Hoje sou adulta. Posso matar você quando quiser.
Fixou os olhos num ponto da parede atrás de Teleborian, recolheu do chão os números e os símbolos matemáticos que haviam caído e, lentamente, recomeçou a equacioná-los.
O Dr. Peter Teleborian contemplou Lisbeth Salander com uma expressão imperturbável. Não teria se tornado um psiquiatra internacionalmente respeitado se lhe faltassem conhecimentos sobre o ser humano. Possuía uma boa capacidade para ler os sentimentos e os estados de ânimo. Sentiu que uma sombra gelada percorria a sala, mas interpretou-a como um sinal de medo e vergonha da paciente por trás daquela fachada impassível. Entendeu-a como uma indicação positiva de que, apesar de tudo, ela reagia à presença dele. Também estava satisfeito de o comportamento dela não haver mudado. Ela vai sabotar a si mesma no tribunal.