A última medida tomada por Erika Berger no SMP foi sentar-se no aquário e escrever um comunicado dirigido a todos os colaboradores. Estava razoavelmente irritada quando começou e, sem querer, a irritação se transformou em três mil caracteres, através dos quais ela explicava por que se demitira do SMP e emitia sua opinião sobre algumas pessoas. Depois, apagou tudo e recomeçou em tom mais neutro.
Não mencionou Peter Fredriksson. Isso poderia atrair muita atenção sobre ele e fazer com que os verdadeiros motivos de Erika desaparecessem debaixo de manchetes sobre um assédio sexual.
Ela apresentou dois motivos. O mais sério deles era que sua proposta de os dirigentes e proprietários do jornal baixarem seus salários e dividendos havia enfrentado uma sólida resistência da direção. Em vista disso, seria obrigada a começar seu trabalho no SMP fazendo cortes radicais na equipe, o que para ela não só contrariava as perspectivas com que haviam lhe acenado quando aceitara o emprego, mas também constituía uma medida que inviabilizava quaisquer tentativas de mudança a longo prazo e de fortalecimento do jornal
O segundo motivo era a revelação a respeito de Borgsjõ. Ela explicou que recebera a ordem de abafar a matéria, o que era incompatível com a sua posição. Portanto, ela não tinha escolha e precisava deixar a redação. Concluiu dizendo que o problema do SMP não estava na sua equipe, e sim na sua direção.
Releu o comunicado, corrigiu um erro de ortografia e o enviou por e-mail a todos os funcionários do grupo. Mandou com cópia para a Pressenstidning e para o órgão sindical Journalisten. Em seguida, guardou o laptop na mochila e foi falar com Lukas Holm.
— Bom, então tchau — disse ela.
— Tchau, Berger. Foi dureza trabalhar com você. Trocaram um sorriso.
— Tenho um último pedido — disse ela.
— Qual?
— O Johannes Frisk estava trabalhando numa matéria para mim.
— Sim, aliás, ninguém sabe o que ele anda fazendo.
— Dê uma força para ele. O Frisk já avançou bastante e eu vou me manter em contato com ele. Deixe ele terminar essa matéria. Prometo que você vai sair ganhando.
Lukas Holm pareceu hesitar. Então concordou com a cabeça.
Apertaram-se as mãos. Ela deixou a chave da redação na mesa de Holm e desceu até a garagem para pegar sua BMW. Pouco depois das quatro da tarde, estacionou nas proximidades da redação da Millennium.
IV. REBOOTING SYSTEM 1°- DE JULHO A 7 DE OUTUBRO
Apesar da farta coletânea de lendas sobre as amazonas da Grécia antiga, América do Sul, África e outras regiões, só existe um exemplo histórico comprovado de mulheres guerreiras. Trata-se do exército feminino dos Fons, uma etnia do Daomé, na África ocidental, país hoje rebatizado de Benim.
Essas mulheres guerreiras nunca são mencionadas na história militar oficial, não foi rodado nenhum filme em que elas sejam as heroínas e atualmente elas só existem, quando muito, em notas históricas de rodapé. Uma única obra científica foi escrita sobre essas mulheres, Amazons of Black Sparta, do historiador Stanley B. Alpern (Hurst & Co Ltd, Londres, 1998). Era, contudo, um exército capaz de lutar, entre as várias forças que ameaçavam seu país, contra qualquer exército de elite de soldados homens da época.
Não se sabe quando o exército feminino dos Fons foi constituído, mas algumas fontes situam o fato no século XVII. Esse exército surgiu originalmente como uma guarda real, porém, foi crescendo até se tornar um efetivo militar de seis mil soldados com status quase divino. Sua função não era nem um pouco decorativa. Durante mais de dois séculos, elas foram a unidade de elite dos Fons contra a invasão dos colonos europeus. Eram temidas pelo exército francês, vencido em diversas batalhas O exército feminino só foi derrotado em 1892, depois que a França mandou vir por navio o reforço de tropas mais bem equipadas, com artilharia, soldados da Legião Estrangeira e um regimento de infantaria da Marinha e da Cavalaria.
Ignora-se quantas guerreiras caíram nessa batalha. As sobreviventes sustentaram uma guerrilha por vários anos, e até meados dos anos 1940 veteranas desse exército ainda estavam vivas, deixando-se entrevistar e fotografar.
23. SEXTA-FEIRA 1º. DE JULHO DOMINGO – 10 DE JULHO
Duas semanas antes do processo de Lisbeth Salander, Christer Malm concluiu a diagramação do livro de 364 páginas, sobriamente intitulado A Seção. A capa trazia as cores da Suécia, letras amarelas sobre um fundo azul. Christer Malm colocara sete fotos de primeiros-ministros suecos, do tamanho de um selo postal, na parte inferior. Acima deles, pairava a foto de Zalachenko. Ele usara a foto do passaporte de Zalachenko, aumentando o contraste para que somente as partes mais escuras aparecessem, como uma espécie de sombra sobre toda a capa. Um design não muito sofisticado, mas eficiente. Assinavam o livro Mikael Blomkvist, Henry Cortez e Malu Eriksson.
Eram cinco e meia da manhã, Christer Malm passara a noite trabalhando. Sentia um pouco de náusea e uma enorme necessidade de ir para casa dormir. Malu Eriksson lhe fizera companhia a noite toda, propondo aqui e ali umas últimas correções que Christer aprovara antes de imprimir. Ela caíra no sono no sofá da redação.
Christer Malm reuniu o texto, as fotos e o arquivo de fontes numa pasta. Abriu o programa Toast e gravou dois CDS. Guardou um no armário de segurança da redação. O outro foi levado por um Mikael Blomkvist sonolento, que havia chegado pouco antes das sete da manhã.
— Vá para casa dormir — disse Mikael.
— Estou indo.
Deixaram Malu Eriksson dormindo na redação e ligaram o alarme. Henry Cortez chegaria às oito horas para o seu turno. Apertaram-se as mãos e se despediram na frente do prédio.
Mikael Blomkvist foi a pé até a Lundagatan, onde mais uma vez pegou emprestado o Honda esquecido de Lisbeth Salander. Ele mesmo foi entregar o CD a Jan Kõbin, dono da Hallvigs Reklam, uma gráfica instalada num modesto edifício de tijolo aparente, ao lado da linha de trem, em Morgongâva, perto de Sala. Era uma entrega que ele não queria confiar aos correios.
Dirigiu devagar e, chegando ao local, esperou tranqüilamente que o impressor conferisse se estava tudo certo com os arquivos. Assegurou-se de que o livro de fato estaria pronto no primeiro dia do julgamento. O problema não era tanto a impressão do miolo, e sim a da capa, que poderia demorar mais. Mas Jan Kõbin garantiu que pelo menos quinhentos exemplares, de uma primeira edição de dez mil, em formato bolso grande, seriam entregues na data combinada.
Mikael verificou ainda se estava bem claro para todos os funcionários da gráfica que eles precisavam manter sigilo. Recomendação, decerto, um tanto desnecessária. Dois anos antes, Hallvigs Reklam imprimira o livro de Mikael sobre o financista Hans-Erik Wennerstrõm em circunstâncias semelhantes. Eles sabiam que os livros da pequena editora Millennium eram particularmente promissores.
Em seguida, Mikael voltou com toda a calma para Estocolmo. Estacionou em frente ao seu prédio na Bellmansgatan e deu um pulo ao seu apartamento para pegar uma pequena mala, na qual enfiou uma muda de roupa, um barbeador e uma escova de dentes. Seguiu até o pontão de Stavsnâs, em Vármdõ, onde estacionou o carro e pegou a balsa para Sandhamn.
Era a primeira vez, desde o Natal, que ia para a sua cabana. Abriu todas as venezianas para arejar o ambiente e bebeu uma garrafa de água mineral. Como sempre acontecia ao encerrar um trabalho, quando o texto já estava na gráfica e nada mais podia ser alterado, sentia-se vazio.