— Sabe o Samirs Gryta? A Erika Berger também vai.
— Que história é essa com a Berger? Ela voltou para a Millennium depois que foi despedida do SMP?
— Ela não foi despedida. Ela se demitiu de uma hora para outra porque divergiu de opinião com o Borgsjõ.
— Tenho a impressão que esse cara é um perfeito idiota.
— E é mesmo — disse Mikael Blomkvist.
Fredrik Clinton ouvia Verdi com seus fones de ouvido. A música era a única coisa que lhe restava capaz de levá-lo para longe dos aparelhos de diálise e de uma dor crescente na parte inferior das costas. Ele não cantarolava. Estava de olhos fechados e acompanhava a melodia com uma mão direita que flutuava no ar e que parecia ter vida própria junto a seu corpo em plena deterioração.
A vida é assim. A gente nasce. Vive. Fica velho. Morre. Ele já concluíra o seu ciclo. Só lhe restava a deterioração.
Sentia-se estranhamente satisfeito com a vida.
Tocava para seu amigo Evert Gullberg.
Era sábado, 9 de julho. Faltava menos de uma semana para o julgamento começar e a Seção poder arquivar aquele caso infeliz. Ele tinha sido avisado naquela manhã. Gullberg resistira mais do que muita gente. Quem dispara uma bala de nove milímetros contra a própria cabeça está preparado para morrer. Porém, três meses haviam transcorrido antes que o corpo de Gullberg abandonasse o jogo, o que talvez se devesse mais ao acaso do que ao Dr. Anders Jonasson, que, em sua teimosia, negava-se a aceitar a derrota. O câncer, e não a bala, é que acabara pondo fim à situação.
Sua morte, contudo, fora dolorosa, e isso entristecia Clinton. Gullberg ficara sem condições de se comunicar, mas em alguns momentos estivera numa espécie de estado consciente. A equipe médica notou que ele sorria quando alguém lhe acariciava o rosto e resmungava quando parecia sentir algo desagradável. Uma vez ou outra, tentara se comunicar com os enfermeiros proferindo sons que ninguém entendia.
Ele não tinha família, e nenhum amigo foi visitá-lo no hospital. Sua última percepção da vida foi uma enfermeira da noite, nascida na Eritréia, chamada Sara Kitama, que estava à sua cabeceira segurando sua mão quando ele deu o último suspiro.
Fredrik Clinton estava convencido de que logo seguiria seu antigo companheiro de armas. Não nutria nenhuma ilusão quanto a isso. O transplante de rim de que precisava desesperadamente parecia cada dia mais hipotético e a deterioração de seu corpo prosseguia. A cada exame, seu fígado e intestino mostravam-se mais devastados.
Esperava viver até o Natal.
Mas estava satisfeito. Sentia uma satisfação quase sobrenatural e excitante por ter voltado à ativa nos últimos meses, e de maneira tão inesperada.
Uma bênção que ele nunca teria esperado.
As últimas notas de Verdi se desvaneceram no momento em que Birger Wadensjõõ abriu a porta do quartinho de descanso de Clinton no Q. G. da Seção, na Artillerigatan.
Clinton abriu os olhos.
Acabara se dando conta de que Wadensjõõ era um fardo. Ele era completamente inadequado para o cargo de chefe da unidade de elite mais importante da Defesa sueca. Não conseguia entender como ele próprio e Hans von Rottinger podiam ter feito, um dia, uma avaliação tão equivocada, considerando Wadensjõõ um herdeiro natural.
Wadensjõõ era um guerreiro que precisava de ventos que o direcionassem. Em períodos de crise, mostrava-se fraco e incapaz de tomar uma decisão. Um pequeno veleiro. Um peso inerte e assustado que carecia de aço na espinha; se dependesse dele, ficaria paralisado, sem ação, e deixaria a Seção afundar.
Simples assim.
Alguns possuíam o dom. Outros sempre se trairiam na hora decisiva.
— Você queria falar comigo — disse Wadensjõõ.
— Sente-se — disse Clinton. Wadensjõõ se sentou.
— Estou numa idade em que não tenho mais tempo para preâmbulos. Vou ser direto. Quando tudo isso acabar, quero que você deixe a direção da Seção.
— Ah, é?
Clinton suavizou o tom.
— Você é um cara legal, Wadensjõõ, mas infelizmente não serve de jeito nenhum para assumir a responsabilidade depois do Gullberg. Nunca deveria ter assumido. Foi realmente um erro eu e o Rottinger não termos nos envolvido de maneira mais clara na sucessão depois que eu fiquei doente.
— Você nunca gostou de mim.
— Aí é que você se engana. Você era um excelente administrador quando eu e o Rottinger chefiávamos a Seção. Teríamos ficado perdidos sem você e também confio demais no seu patriotismo. Não confio é na sua capacidade de tomar decisões.
De repente, Wadensjõõ sorriu amargamente.
— Então não sei se quero continuar na Seção.
— Agora que o Gullberg e o Rottinger se foram, eu preciso tomar, sozinho, as decisões finais. Você rejeitou sistematicamente tudo que eu decidi nesses últimos meses.
— Repito: suas decisões são insanas. Isso vai acabar em catástrofe.
— Pode ser. Mas a sua falta de firmeza seria para nós a garantia de um naufrágio. Em todo caso, no momento temos uma chance, e parece estar dando certo. A Millennium está sem margem de manobra. Eles talvez desconfiem que a gente exista de algum modo, mas não têm provas e não têm a mínima chance de encontrar uma, ou de nos descobrir. Estamos controlando pesadamente tudo o que eles fazem.
Wadensjõõ olhou pela janela. Avistou os telhados de alguns prédios vizinhos.
— O único fio solto é a filha do Zalachenko. Se alguém for levantar a história dela e ouvir o que ela tem a falar, tudo pode acontecer. Mas, enfim, o julgamento começa daqui a uns dias, e então tudo isso acaba. Dessa vez, vamos ter que enterrá-la bem fundo para ela nunca mais nos assombrar.
Wadensjõõ balançou a cabeça.
— Não entendo essa sua atitude — disse Clinton.
— Pois é. Compreendo que você não entenda. Você acaba de completar sessenta e oito anos. Está morrendo. Suas decisões não são racionais, mas mesmo assim parece que conseguiu enfeitiçar o Georg Nystrõm e o Jonas Sandberg. Eles lhe obedecem como se você fosse o Todo-Poderoso.
— Eu sou o Todo-Poderoso em tudo o que diz respeito à Seção. Estamos trabalhando de acordo com um plano. A nossa determinação deu uma chance à Seção. E me sinto muito seguro de dizer que a Seção nunca mais vai se ver numa situação de tanta fragilidade. Uma vez terminado esse caso, vamos fazer uma revisão geral da nossa atividade.
— Entendo.
— O Georg Nystrom vai ser o novo chefe. Na verdade, ele está velho demais, mas é o único que pode ser levado em consideração, e ele prometeu ficar pelo menos mais seis anos. O Sandberg é muito jovem, e seu estilo de chefia mostra toda a sua inexperiência. A formação dele já deveria estar concluída.
— Clinton, você não tem noção do que fez. Você assassinou um homem. O Bjõrck trabalhou trinta e cinco anos para a Seção, e você mandou matá-lo. Você não percebe que...
— Você sabe muito bem que era preciso. Ele tinha nos traído e jamais suportaria a pressão quando a polícia começasse a apertá-lo de jeito.
Wadensjõõ se levantou.
— Eu ainda não terminei.
— Então fica para mais tarde. Tenho trabalho a fazer, enquanto você fica aí deitado com suas fantasias de onipotência divina.
Wadensjõõ se encaminhou para a porta.
— Se você está moralmente tão indignado, por que não vai falar com o Bublanski e confessa seus crimes?
Wadensjõõ virou-se para o doente.
— Essa idéia chegou a me passar pela cabeça. Mas, apesar do que você acha, eu defendo a Seção com todas as minhas forças.
Ao abrir a porta, deu de cara com Georg Nystrom e Jonas Sandberg.
— Olá, Clinton — disse Nystrom. — Temos umas duas, três coisas para conversar.
— Entrem. O Wadensjõõ estava mesmo de saída. Nystrom esperou a porta se fechar.
— Fredrik, estou começando a ficar seriamente preocupado — disse Nystrom.
— Por quê?
— O Sandberg e eu andamos pensando. Estão acontecendo umas coisas que a gente não está entendendo direito. Hoje de manhã, a advogada da Salander entregou a autobiografia dela para o procurador.