Nystrõm assentiu.
— Isso significa que, quando recebermos a notícia da morte do Blomkvist vamos ter que fazer um jogo de cena. Vamos convocar uma reunião de emergência e fingir que estamos atônitos. Vamos especular sobre quem poderia estar por trás do homicídio, mas sem falar nada sobre a droga etc, até a polícia descobrir as evidências.
Mikael Blomkvist despediu-se da Moça da TV4 pouco antes das cinco horas. Tinham passado a tarde revisando os pontos ainda obscuros do material, e em seguida Mikael havia sido maquiado e concedera uma extensa entrevista.
Tinham-lhe feito uma pergunta que ele tivera dificuldade em responder de forma coerente, e na qual eles haviam insistido várias vezes.
Como funcionários do Estado chegaram a ponto de cometer assassinatos?
Mikael se fizera essa mesma pergunta muito antes da Moça da TV4. A Seção deve ter visto em Zalachenko uma enorme ameaça incrível, mas essa não era uma resposta satisfatória. A resposta que ele acabou dando tampouco era satisfatória.
— A única explicação que me ocorre é que, com o passar do tempo, a Seção foi se transformando em uma seita, no sentido real da palavra. Eles ficaram iguais à seita de Knutsby, ao pastor Jim Jones e a pessoas desse tipo. Eles escrevem suas próprias leis, nas quais a noção de bem e de mal não tem mais importância, e parecem estar completamente afastados da sociedade.
— Como uma espécie de doença mental?
— Essa sua definição não está totalmente errada.
Ele pegou o metrô para Slussen e se deu conta de que era cedo demais para ir ao Samirs Gryta. Demorou-se algum tempo na praça de Sôdermalm. Estava preocupado, mas, por outro lado, a vida voltara a ter sentido. Só quando Erika Berger reassumira a Millennium é que ele se deu conta de como ela lhe fizera falta. De um modo catastrófico. E o fato de o leme estar de novo nas mãos dela não criara nenhum conflito interno, pelo contrário. Malu estava felicíssima por recuperar seu cargo de assistente de redação, sentia-se exultante por a vida (como ela dizia) ter voltado ao seu curso normal.
O retorno de Erika também tornara evidente o déficit de pessoal nos três meses anteriores. Erika tivera de voltar às pressas e, com a ajuda de Malu Eriksson, conseguira dominar boa parte do trabalho de organização que havia se acumulado e sido deixado um pouco para lá. De uma boa reunião de redação saíra a decisão de que a Millennium precisava crescer e contratar pelo menos um colaborador, provavelmente dois. Não tinham, porém, a menor idéia de onde buscar recursos para tanto.
Por fim, Mikael comprou os jornais da tarde e entrou no Java da Hornsgatan para tomar um café e fazer hora até se encontrar com Erika.
A procuradora Ragnhild Gustavsson, do Ministério Público, largou seus óculos de leitura sobre a mesa de reuniões e observou os presentes. Tinha cinqüenta e oito anos e cabelos grisalhos curtos que emolduravam um rosto rechonchudo e riscado de rugas. Ela havia sido procuradora por vinte e cinco anos e trabalhava no Ministério Público desde o início dos anos 1990.
Apenas três semanas tinham transcorrido desde que ela fora repentinamente chamada ao gabinete oficial do procurador-geral da nação para encontrar-se com Torsten Edklinth. Naquele dia, estava encerrando alguns casos rotineiros e preparando-se para umas férias de seis semanas na sua casa de campo de Husarõ. Em vez disso, fora incumbida de conduzir uma investigação sobre um grupo de funcionários de alto nível do Estado, reunidos por enquanto sob o termo "a Seção". Todos os seus planos de férias tinham sido rapidamente abandonados. Descobrira que aquela seria sua principal tarefa por tempo indeterminado e tinham-lhe deixado quase inteiramente livre para organizar ela própria seu trabalho e tomar as decisões necessárias.
— Esse caso vai ser uma das investigações criminais mais espetaculares da história da Suécia — dissera o procurador-geral da nação.
Ela não tinha como não concordar.
Em seguida, fora tendo surpresa atrás de surpresa quando Torsten Edklinth lhe fez um resumo do caso e da investigação que ele realizara por ordem do primeiro-ministro. A investigação não estava concluída, mas ele achava que tinha chegado a um ponto em que precisava apresentar o caso a um procurador.
Primeiro ela quis ter uma visão do conjunto do material que Torsten
Edklinth lhe repassara. Mas à medida que a extensão dos crimes cometidos começou a se definir, percebeu que tudo o que ela estava fazendo e todas as decisões que iria tomar seriam julgados pelos futuros livros de história. A partir daí, passou a dedicar cada minuto do seu dia a tentar formar uma visão coerente daquela lista quase inconcebível de crimes com que estava lidando. Era um caso único na história do direito sueco e, já que se tratava de desenterrar atos criminosos que vinham sendo cometidos havia pelo menos trinta anos, compreendeu a necessidade de uma organização muito estrita do trabalho. Lembrou-se dos agentes italianos que investigaram oficialmente a máfia e de como eles tiveram de trabalhar quase clandestinamente para sobreviver aos anos 1970 e 1980. Entendia que Edklinth tivesse sido obrigado a agir em segredo. Ele não sabia em quem confiar.
A primeira providência de Ragnhild Gustavsson foi chamar três colaboradores do Ministério Público. Escolheu gente que ela conhecia fazia anos. Em seguida, contratou um historiador conhecido do Conselho de Prevenção da Criminalidade para esclarecê-la sobre o surgimento das polícias de segurança ao longo das décadas. Por fim, nomeou Rosa Figuerola para comandar de forma oficial as investigações.
Assim, o inquérito sobre a Seção assumira um caráter constitucional. Já era possível tratá-lo como uma investigação policial qualquer, mesmo tendo sido decretado seu sigilo.
Durante as duas últimas semanas, a procuradora Gustavsson convocara uma considerável quantidade de pessoas para interrogatórios formais, porém muito discretos. Além de Edklinth e Figuerola, ela falara com os inspetores Bublanski, Sonja Modig, Curt Bolinder e Jerker Holmberg. Em seguida, com Mikael Blomkvist, Malu Eriksson, Henry Cortez, Christer Malm, Annika Giannini, Dragan Armanskij, Susanne Linder e Holger Palmgren. Com exceção dos funcionários da Millennium, que por princípio não respondiam a perguntas que pudessem comprometer a proteção de suas fontes, todos ofereceram obsequiosamente provas e relatórios detalhados.
Ragnhild Gustavsson não tinha gostado nada, nada quando lhe foi apresentado um cronograma definido pela Millennium que indiretamente a obrigava a se decidir pela prisão de determinado número de pessoas numa data determinada. De sua parte, calculava que iria precisar de vários meses até alcançar aquele estágio da investigação. Nesse caso específico, porém, não tivera escolha. Mikael Blomkvist, da revista*. M/7/ennzum, mostrara-se irredutível. Não estava subordinado a nenhum decreto ou regulamento oficial e sua intenção era publicar a matéria no terceiro dia do julgamento de Lisbeth Salander. Ragnhild Gustavsson, portanto, fora obrigada a se adaptar e, simultaneamente, a agir para que suspeitos e provas eventuais não tivessem tempo de desaparecer. Blomkvist, diga-se, gozava do surpreendente apoio de Edklinth e Figuerola, e, aos poucos, a procuradora foi percebendo que o modelo blomkvistiano tinha lá suas vantagens. Como procuradora, ela iria poder contar com a bem orquestrada mãozinha da imprensa de que precisaria para conduzir a acusação. Além disso, o processo seria tão rápido que a delicada investigação não teria tempo de vazar pelos corredores da administração e chegar aos ouvidos da Seção.
— Para o Blomkvist, antes de mais nada trata-se de fazer justiça a Lisbeth Salander. Desmascarar a Seção é mera conseqüência — constatou Rosa Figuerola.
O julgamento de Lisbeth Salander começaria dali a dois dias, na quarta--feira, e a reunião desta segunda tinha por objetivo revisar todo o material disponível e distribuir tarefas.