Annika Giannini estava sentada à mesa em frente a Ekstrõm. Separava uns papéis e não olhava para ninguém. Mikael teve a impressão de que sua irmã estava um pouco nervosa. Uma ligeira apreensão, pensou.
Então o presidente do tribunal, o assessor e os jurados entraram na sala. O presidente se chamava Jõrgen Iversen, era um homem de cinqüenta e sete anos de cabelos brancos, rosto magro e andar atlético. Mikael pesquisara o passado de Iversen e constatara que ele era tido como um juiz muito experiente e correto, e que já presidira vários julgamentos de repercussão na mídia.
Por último, Lisbeth Salander foi trazida para a sala.
Por mais que Mikael já estivesse acostumado com a capacidade que Lisbeth Salander tinha de se vestir de maneira chocante, ficou estupefato ao ver que Annika Giannini permitira que ela se apresentasse na sala do tribunal vestida com uma saia curta de couro preto, bainha desfeita, e uma regata com os dizeres I am irritated que mal escondia suas tatuagens. Usava coturnos, um cinto com tachas e meias americanas listradas de preto e lilás. Estava com uma dúzia de piercings nas orelhas e argolas no lábio e nas sobrancelhas. Depois da cirurgia seu cabelo crescera como uma espécie de palha preta desgrenhada. Além disso, estava exageradamente maquiada. Usava um batom cinzento, sobrancelhas acentuadas e uma quantidade inédita de rimei preto. Na época em que os dois conviveram, Lisbeth não se interessava particularmente por maquiagem.
Ela parecia um tanto vulgar. Gótica. Lembrava um vampiro de um filme B dos anos 1960. Mikael reparou que vários jornalistas engasgaram de surpresa e exibiram um sorriso divertido ao vê-la surgir. Quando, enfim, tinham a oportunidade de conhecer aquela garota cercada de escândalos, sobre a qual eles tanto haviam escrito, ela correspondia amplamente a suas expectativas.
Então Mikael se deu conta de que Lisbeth Salander estava fantasiada. Em tempos normais, ela se vestia de qualquer maneira, e obviamente sem nenhum bom gosto. Mikael sempre achara que ela não se vestia daquele jeito para seguir uma moda, e sim para marcar sua identidade. Lisbeth Salander demarcava seu território para que ele parecesse hostil. Ele sempre associara as tachas da jaqueta de couro de Lisbeth aos espinhos de um porco-espinho. Era o mesmo mecanismo de defesa. Era um sinal para os que a cercavam. Não tente me afagar. Vai doer.
Mas para sua entrada no tribunal ela acentuara de tal modo o estilo de sua roupa que ele parecia quase paródico de tão exagerado.
Mikael percebeu de repente que não se tratava de acaso, e sim de parte da estratégia de defesa de Annika.
Se Lisbeth Salander chegasse bem penteada, com uma blusa comportada e sapatos sem salto, iria lembrar um bandido querendo vender uma imagem de bonzinho ao tribunal. Era uma questão de credibilidade. Ela estava vindo tal como era, e não como outra pessoa. E num estado ligeiramente exagerado, para deixar as coisas bem claras. Não pretendia ser o que não era. Sua mensagem ao tribunal era que não tinha nenhum motivo para se envergonhar ou fazer de conta. Se para o tribunal sua aparência física era um problema, não era problema de Lisbeth. A sociedade a acusava de uma série de coisas e o procurador a tinha levado a julgamento. Com sua simples aparição, ela já mostrava como o raciocínio do procurador lhe parecia uma bobagem.
Caminhou com segurança e sentou-se no lugar indicado, ao lado de sua advogada. Seu olhar percorreu o público. Não havia a menor curiosidade em seus olhos. Antes de mais nada, eles pareciam captar e registrar, furiosos, as pessoas que já a tinham condenado nas páginas dos jornais.
Era a primeira vez que Mikael a via desde que a encontrara, como uma boneca de pano ensangüentada, no banco da cozinha de Gosseberga, e mais de um ano e meio se passara desde que a vira em circunstâncias normais. Se é que a expressão "circunstâncias normais" era apropriada tratando-se de Lisbeth Salander. Seus olhares se cruzaram por alguns segundos. O dela passou por ele brevemente, sem dar nenhum sinal de reconhecimento. No entanto, ela observou os hematomas que cobriam a face e a têmpora de Mikael, e o curativo cirúrgico sobre seu supercílio direito. Por um instante, Mikael teve a impressão de vislumbrar um esboço de sorriso nos olhos dela. Não soube dizer se ele apenas havia fantasiado aquilo. Então o juiz Iversen bateu o martelo e a sessão começou.
O público permaneceu na sala do tribunal apenas por meia hora. Ouviu o procurador Ekstrõm apresentar os fatos e expor os tópicos da acusação.
Com exceção de Mikael Blomkvist, todos os repórteres tomaram nota assiduamente, mesmo que já estivessem cansados de saber que acusações Ekstrõm pretendia fazer contra Lisbeth Salander. Quanto a Mikael ele já escrevera seu artigo e só viera ao tribunal para marcar presença e cruzar o olhar com Lisbeth.
A introdução de Ekstrõm durou vinte e dois minutos. Então chegou a vez de Annika Giannini. Sua réplica durou trinta segundos. Sua voz estava firme.
— A defesa refuta todos os tópicos da acusação, menos um. Minha cliente se reconhece culpada de porte ilegal de armas, no caso uma bomba de gás lacrimogêneo. Quanto aos outros tópicos, minha cliente nega toda e qualquer responsabilidade ou intenção criminosa. Vamos demonstrar que as acusações do procurador são falsas e que Lisbeth Salander foi vítima de abuso agravado do Poder Judiciário. Vou solicitar que minha cliente seja declarada inocente, que sua tutela seja anulada e que ela seja posta em liberdade.
Ouviam-se as canetas riscando os blocos de anotação dos repórteres. A estratégia da Dra. Giannini era por fim revelada, e mostrava-se bem diferente daquela que muitos repórteres esperavam. A maioria julgara que Annika Giannini iria apelar para a doença mental de sua cliente e explorá-la a seu favor. Mikael não conseguiu disfarçar um sorriso.
— Humm — disse o juiz Iversen, anotando alguma coisa. Ele olhou para Annika Giannini. — Já concluiu?
— Minha solicitação já está feita.
— O procurador tem algo a acrescentar? — perguntou Iversen.
Foi então que o procurador Ekstrõm pediu que as deliberações se dessem a portas fechadas, alegando que se tratava do estado psíquico e do bem--estar de uma pessoa sofrida, além de haver detalhes que podiam implicar a segurança da nação.
— Imagino que esteja falando do suposto caso Zalachenko? — perguntou Iversen.
— Exato. Alexander Zalachenko chegou à Suécia como refugiado político, tentando escapar de uma terrível ditadura. Alguns aspectos do caso, vínculos entre algumas pessoas e outros elementos desse tipo, ainda se encontram sob sigilo, embora o senhor Zalachenko esteja morto. Por esse motivo, solicito que a audiência se dê a portas fechadas e que seja imposto o sigilo profissional no momento em que as deliberações se mostrarem especialmente delicadas.
— Entendo — disse Iversen, e em sua testa desenharam-se sulcos profundos.
— Além disso, boa parte das deliberações estará relacionada com a tutela da acusada, o que automaticamente remete a questões quase sempre confidenciais. De modo que é por solidariedade à acusada que eu peço a audiência a portas fechadas.
— Qual a posição da doutora Giannini quanto ao pedido do procurador?
— No que nos diz respeito, é indiferente.
O juiz Iversen refletiu por alguns instantes. Consultou seu assessor e em seguida declarou, para grande irritação dos presentes, que iria atender à solicitação do procurador. Assim, Mikael Blomkvist foi obrigado a deixar a sala.
Dragan Armanskij aguardava Mikael Blomkvist embaixo da escadaria do Palácio da Justiça. Fazia um calor terrível naquele dia de julho e Mikael sentiu duas manchas de suor começando a se formar em suas axilas. Seus dois guarda-costas o seguiram lá fora. Cumprimentaram Dragan Armanskij com um gesto de cabeça e passaram a examinar os arredores.
— É esquisito andar com guarda-costas — disse Mikael. — E quanto está custando essa brincadeira?
— Presente da empresa — disse Armanskij. — Tenho um interesse pessoal em manter você vivo. E também faturamos o equivalente a duzentas e cinqüenta mil coroas nos últimos meses.