Mikael assentiu com a cabeça.
— Que tal um café? — sugeriu Mikael, apontando para o café italiano da Bergsgatan.
Armanskij concordou. Mikael pediu um caffè latte, enquanto Armanskij optou por um expresso duplo com um pingo de leite. Sentaram-se no terraço, à sombra. Os guarda-costas sentaram-se a uma mesa vizinha diante de um copo de Coca-Cola.
— Portas fechadas — observou Armanskij.
— Era de se esperar. E é até bom, assim a gente domina melhor o fluxo de informações.
— É, tudo bem, mas estou gostando cada vez menos desse Richard Ekstrõm.
Mikael concordou. Tomaram o café contemplando o Palácio da Justiça, onde o futuro de Lisbeth Salander iria ser decidido.
— O contra-ataque foi lançado — disse Mikael.
— E está muito bem preparado — disse Armanskij. — Preciso admitir que sua irmã me impressionou. Quando ela começou a apresentar sua estratégia, pensei que ela estivesse brincando, mas quanto mais penso sobre isso mais me parece o certo a fazer.
— Esse processo não vai se resolver lá dentro — disse Mikael.
Fazia vários meses que ele repetia essas palavras como se fosse um mantra.
— Você vai ser chamado para testemunhar — disse Armanskij.
— Eu sei. Estou preparado. Mas isso será só depois de amanhã. Pelo menos é com o que estamos contando.
O procurador Richard Ekstrõm tinha esquecido seus óculos bifocais em casa e teve de erguer os olhos de leitura sobre a testa e estreitar os olhos para conseguir ler suas anotações escritas em letra miúda. Esfregou rapidamente o cavanhaque loiro antes de recolocar os óculos e observar a sala.
Lisbeth Salander estava sentada com as costas eretas e contemplava o procurador com um olhar insondável. Sua fisionomia e olhos estavam imóveis. Não parecia estar totalmente presente. Chegara a hora de o procurador iniciar seu interrogatório.
— Gostaria de lembrar, senhorita Salander, que está sob juramento — disse Ekstrõm por fim.
Lisbeth Salander não reagiu. O procurador Ekstrõm parecia esperar algum tipo de reação e aguardou alguns segundos. Ele ergueu os olhos.
— A senhorita está sob juramento — repetiu.
Lisbeth Salander inclinou levemente a cabeça. Annika Giannini estava ocupada lendo alguma coisa no relatório do inquérito preliminar e não parecia interessada no que o procurador Ekstrõm dizia. Ele juntou seus papéis. Depois de alguns minutos de um silêncio desconfortável, ele pigarreou.
— Muito bem — disse Ekstrõm num tom brando. — Vamos diretamente aos fatos ocorridos na casa de campo do falecido doutor Bjurman em Stallarholmen, em 6 de abril deste ano, fatos que são o ponto de partida da apresentação dos acontecimentos que fiz nesta manhã. Vamos tentar esclarecer os motivos pelos quais a senhorita foi até Stallarholmen e disparou uma bala em Carl-Magnus Lundin.
Ekstrõm exortou Lisbeth Salander com o olhar. Ela continuava não reagindo. De repente, o procurador pareceu exasperado. Afastou as mãos e voltou o olhar para o presidente do tribunal. O juiz Jõrgen Iversen parecia hesitar. Deu uma espiada na direção de Annika Giannini, ainda envolvida com um documento, totalmente alheia ao mundo à sua volta.
O juiz Iversen deu uma tossidinha. Olhou para Lisbeth Salander.
— Devemos entender seu silêncio como uma recusa a responder às perguntas? — perguntou.
Lisbeth Salander virou a cabeça e cruzou o olhar com o do juiz Iversen.
— Estou disposta a responder às perguntas — retrucou. O juiz Iversen meneou a cabeça.
— Então talvez possa responder à pergunta — sugeriu o procurador Ekstrõm.
Lisbeth Salander voltou a olhar para Ekstrõm. Permaneceu calada.
— A senhorita poderia fazer a gentileza de responder à pergunta? — pediu o juiz Iversen.
Lisbeth mais uma vez dirigiu o olhar para o presidente do tribunal e levantou as sobrancelhas. Sua voz era nítida e clara.
— Que pergunta? Por enquanto, esse senhor — ela inclinou a cabeça na direção de Ekstrõm — fez algumas afirmações sem apresentar nenhuma prova. Não ouvi nenhuma pergunta.
Annika Giannini ergueu os olhos. Pôs os cotovelos na mesa e apoiou o queixo na palma da mão com um súbito interesse no olhar.
O procurador Ekstrõm perdeu o fio da meada por alguns segundos.
— Pode repetir a pergunta? — pediu o juiz Iversen.
— Eu perguntei... a senhorita foi até a casa de campo do doutor Bjurman em Stallarholmen com a intenção de atirar em Carl-Magnus Lundin?
— Não, o que o senhor disse foi: "Vamos tentar esclarecer os motivos pelos quais a senhorita foi até Stallarholmen atirar em Carl-Magnus Lundin". Não era uma pergunta. Era uma afirmação antecipando uma resposta. Eu não sou responsável pelas suas afirmações.
— Não seja impertinente. Responda à pergunta.
— Não.
Silêncio.
— Como assim, não?
— Essa é a resposta à pergunta.
O procurador Ekstrõm suspirou. Ia ser um dia longo. Lisbeth Salander o fitou, esperando o resto.
— Talvez seja melhor retomar do início — disse ele. — A senhorita esteve na casa de campo do doutor Bjurman, em Stallarholmen, na tarde de 6 de abril deste ano?
— Sim.
— Como foi até lá?
— Peguei o trem de subúrbio até Sõdertalje e depois o ônibus para Strángnãs.
— Por que a senhorita foi até Stallarholmen? Tinha marcado algum encontro com Carl-Magnus Lundin e seu amigo Benny Nieminen?
— Não.
— Como se explica eles terem aparecido?
— Isso o senhor tem de perguntar para eles.
— Nesse momento, estou perguntando para a senhorita. Lisbeth Salander não respondeu.
O juiz Iversen pigarreou.
— Suponho que a senhorita Salander não está respondendo porque, semanticamente, o senhor está outra vez fazendo uma afirmação — disse Iversen cheio de boa vontade.
Annika Giannini não conteve uma risada, alta o bastante para ser ouvida. Silenciou imediatamente e tornou a mergulhar em sua papelada. Ekstrõm lançou-lhe um olhar irritado.
— Na sua opinião, por que Lundin e Nieminen teriam ido à casa de campo de Bjurman?
— Não sei. Imagino que tenha sido para incendiar a casa. O Lundin estava com um litro de gasolina numa garrafa plástica, na sacola da sua Harley Davidson.
Ekstrõm fez um muxoxo.
— Por que a senhorita foi até a casa de campo do doutor Bjurman?
— Eu estava atrás de informações.
— Que tipo de informação?
— As mesmas informações que, imagino, o Lundin e o Nieminen que. riam destruir e que, portanto, podiam ajudar a descobrir quem tinha matado aquele outro excremento.
— A senhora considera que o doutor Bjurman era um "excremento"? Eu ouvi bem?
— Sim.
— E qual o motivo dessa sua opinião?
— Esse homem era um porco sádico, um canalha estuprador, portanto não passava de um excremento.
Ela citou, palavra por palavra, a frase tatuada na barriga do falecido Dr. Bjurman, reconhecendo assim, indiretamente, que ela era a autora do texto. Essa, porém, não era uma das acusações contra Lisbeth Salander. Bjurman jamais mencionara essa violência à polícia, sendo impossível determinar se ele consentira em se deixar tatuar ou se a tatuagem tinha sido feita à força.
— A afirmação, então, é de que seu tutor teria abusado da senhorita. Poderia nos dizer quando tais abusos ocorreram?
— Na terça-feira 18 de fevereiro de 2003 e, depois, na sexta-feira 7 de março do mesmo ano.
— A senhorita negou-se a responder todas as perguntas dos policiais que tentaram se comunicar consigo durante os interrogatórios. Por quê?
— Eu não tinha nada a dizer para eles.
— Eu li a sua suposta autobiografia, que sua advogada nos apresentou repentinamente alguns dias atrás. Devo dizer que se trata de um documento estranho, voltaremos a ele depois. Mas nele a senhorita afirma que, na primeira vez, o doutor Bjurman a teria obrigado a praticar uma felação e, na segunda vez, a teria estuprado repetidas vezes, torturando-a durante uma noite inteira.