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Lisbeth não respondeu.

— É verdade?

— Sim.

— A senhorita denunciou esses estupros à polícia?

— Não.

— Por que não?

— A polícia nunca me escutou nas vezes em que tentei contar alguma coisa. Logo, não fazia nenhum sentido ir denunciar o que quer que fosse.

—  A senhorita comentou esses abusos com alguém? Com alguma amiga?

— Não.

— Por que não?

— Porque não dizia respeito a mais ninguém.

— Certo. A senhorita consultou um advogado?

— Não.

— A senhorita foi a algum médico tratar dos ferimentos que lhe teriam sido infligidos?

— Não.

— E não recorreu ao sos-Mulheres.

— Mais uma vez o senhor está fazendo uma afirmação.

—  Me desculpe. A senhorita procurou alguma unidade do sos-Mulheres?

— Não.

Ekstrõm voltou-se para o presidente do tribunal.

— Eu gostaria de chamar a atenção do tribunal para o fato de que a ré declarou ter sido vítima de dois abusos sexuais, o segundo extremamente grave. Ela afirma que o autor dos estupros era seu tutor, o já falecido doutor Nils Bjurman. Paralelamente, deve-se levar em conta os seguintes fatos...

Ekstrõm remexeu seus papéis.

— A investigação da Brigada Criminal não encontrou, no passado do doutor Bjurman, nada que confirme a veracidade do relato de Lisbeth Salan-der. Bjurman nunca foi condenado. Jamais foi objeto de uma denúncia ou de uma investigação policial. Já foi tutor ou administrador legal de vários jovens e nenhum deles revela ter sido vítima de qualquer tipo de abuso. Pelo contrário, insistem que Bjurman sempre se comportou correta e gentilmente com eles.

Ekstrõm virou a página.

— Também devo lembrar que Lisbeth Salander foi diagnosticada como esquizofrênica paranóica. Estão aí vários documentos atestando as tendências violentas dessa jovem e que ela teve, desde o início da adolescência, problemas de convívio social. Passou vários anos numa instituição de psiquiatria infantil e está sob tutela desde os dezoito anos. Mesmo que seja lamentável, existem razões para tanto. Minha convicção é de que ela não deve ser presa, e sim tratada.

Ele fez uma pausa eloqüente.

— Debater sobre o estado mental de uma jovem é um exercício repugnante. Tantas coisas atingem uma vida, e depois o estado mental da pessoa se transforma em objeto de interpretações. No presente caso, porém, podemos nos basear na confusa imagem de mundo da própria Lisbeth Salander. Uma imagem que se manifesta, de um modo que não poderia ser mais claro, em sua suposta autobiografia. Em nenhum lugar sua falta de contato com a realidade aparece de maneira tão evidente. Não há necessidade de testemunhas ou de interpretações que joguem com as palavras. Temos suas próprias palavras. Podemos avaliar nós mesmos a credibilidade de suas afirmações.

Seus olhos pousaram em Lisbeth Salander. Seus olhares se encontraram. Ela sorriu. Ela tinha um ar de poucos amigos. A testa de Ekstrõm se contraiu.

— Doutora Giannini, não tem nada a dizer? — perguntou o juiz Iversen.

— Não — respondeu Annika Giannini. — A não ser que as conclusões do procurador Ekstrõm são fantasiosas.

A tarde, a audiência começou com o interrogatório de uma testemunha, Ulrika von Liebenstaalil, da Comissão de Tutelas, que Ekstrõm convocara na tentativa de esclarecer se já houvera alguma queixa contra o dr. Bjurman. A idéia foi rejeitada com veemência por Liebenstaahl. Esta julgava tal afirmação ofensiva.

—  Existe um controle rigoroso nas questões de tutela. O doutor Bjurman já trabalhava para a Comissão de Tutelas havia quase vinte anos quando foi assassinado de forma tão vergonhosa.

Lançou um olhar maldoso para Lisbeth Salander, embora Lisbeth não fosse acusada desse homicídio e já estivesse definido que Bjurman fora morto por Ronald Niedermann.

— Nesses anos todos, nunca houve uma queixa sequer contra o doutor Bjurman. Ele era um homem consciencioso que muitas vezes revelou um profundo envolvimento com seus clientes.

— Então a senhora não acha provável que ele tenha submetido Lisbeth Salander a uma violência sexual?

— Acho essa afirmação absurda. Temos os relatórios mensais enviados pelo doutor Bjurman e estive pessoalmente com ele em várias ocasiões para conversarmos sobre esse caso.

— A doutora Giannini apresentou uma solicitação para que a tutela de Lisbeth Salander seja anulada imediatamente.

— Ninguém mais do que nós, da Comissão de Tutelas, fica feliz quando uma tutela pode ser anulada. Mas infelizmente é nossa responsabilidade seguir as regras em vigor. A comissão, seguindo os procedimentos normais, estabeleceu a exigência de que uma avaliação psiquiátrica declare Lisbeth Salander curada antes que se cogite a possibilidade de anular sua tutela.

— Entendo.

—  Isso significa que ela deve se submeter a exames psiquiátricos. E, como se sabe, ela se recusa.

O interrogatório de Ulrika von Liebenstaahl se estendeu por quarenta minutos, durante os quais foram examinados os relatórios mensais de Bjurman.

Annika Giannini fez apenas uma pergunta, pouco antes de o interrogatório terminar.

— A senhora se encontrava no quarto do doutor Bjurman na noite de 7 para 8 de março de 2003?

— É claro que não.

— Em outras palavras, a senhora ignora por completo se as afirmações de minha cliente são verdadeiras ou falsas?

— Essa acusação contra o doutor Bjurman é um disparate.

— Isso é a sua opinião. A senhora tem como oferecer um álibi ou provar de alguma maneira que ele não abusou da minha cliente?

— Isso é obviamente impossível. Mas a probabilidade...

— Obrigada. Era só isso — interrompeu Annika Giannini.

Mikael Blomkvist encontrou-se com a irmã por volta das sete da noite na sede da Milton Security, perto de Slussen, para fazer o balanço daquele dia.

— Tudo transcorreu mais ou menos como previsto — disse Annika. — O Ekstrõrn engoliu a autobiografia da Salander.

— Ótimo. Como ela está se saindo? Annika começou a rir.

— Às mil maravilhas, parece uma perfeita psicopata. Só está se comportando com naturalidade.

— Humm.

—  Hoje o assunto foi principalmente Stallarholmen. Amanhã vai ser Gosseberga, o pessoal da Brigada Técnica vai ser interrogado, coisas assim. O Ekstrõm vai tentar provar que a Salander foi até lá para assassinar o pai.

— Certo.

— Mas a gente talvez tenha um problema técnico. Hoje à tarde, o Ekstrõm convocou uma tal de Ulrika von Liebenstaahl, da Comissão de Tutelas. Ela ficou insistindo que eu não tenho o direito de representar a Lisbeth Salander.

— Como assim?

— Ela diz que como a Lisbeth está sob tutela não tem o direito de escolher seu próprio advogado.

— Ah, é?

— Ou seja, tecnicamente falando, não posso ser a advogada dela se eu não for aprovada pela Comissão de Tutelas.

— E aí?

— O juiz Iversen vai se pronunciar a respeito amanhã de manhã. Falei com ele rapidamente depois das deliberações. Mas acho que ele vai decidir que eu continue a representá-la. Aleguei que a Comissão de Tutelas teve três meses para protestar e que é muita cara de pau apresentar uma solicitação dessas agora que o julgamento já começou.

— O Teleborian vai testemunhar na sexta-feira. E tem que ser interrogado por você.

Depois de passar a quinta-feira estudando mapas e fotografias e ouvindo conclusões técnicas verborrágicas sobre o que se passara em Gosseberga, o procurador Ekstrõm conseguira estabelecer que todas as provas indicavam que Lisbeth Salander fora até a casa do pai com a intenção de matá-lo. O elo mais forte na cadeia de provas era ela ter levado consigo uma arma de fogo, uma Wanad P-83 polonesa.