— Obrigada. Então você pode me deixar em algum ponto da Folkun-gagatan.
— Você não quer dizer onde mora nem para mim?
— Mais tarde. Agora eu quero que me deixem em paz.
— Tudo bem.
Annika tinha ligado o celular ao sair do Palácio da Polícia depois do interrogatório. Quando passaram por Slussen, ele começou a apitar. Ela olhou a tela.
— É o Mikael. Nessas últimas horas ele ligou mais ou menos de dez em dez minutos.
— Eu não quero falar com ele.
— Tudo bem. Posso fazer uma pergunta pessoal?
— Qual?
— O que o Mikael fez para você ter tanto ódio dele? Quero dizer, sem ele você hoje estaria provavelmente sendo internada num hospital psiquiátrico.
— Eu não tenho ódio do Mikael. Ele não me fez nada. Só não quero falar com ele agora.
Annika Giannini observou sua cliente com o canto do olho.
— Não pretendo me meter nas suas histórias, mas você não resistiu aos encantos dele, não foi?
Sem responder, Lisbeth olhou pela janela lateral.
— O meu irmão é totalmente irresponsável quando se trata de relacionamentos. Ele vai transando com as mulheres pela vida, sem perceber que pode machucar aquelas que vêem nele mais do que um caso eventual.
Lisbeth a encarou.
— Eu não quero falar sobre o Mikael com você.
— Tudo bem — disse Annika. Estacionou rente à calçada pouco antes da Erstagatan. Aqui está bom para você?
— Está.
Permaneceram em silêncio. Lisbeth não esboçou nenhum gesto para abrir a porta. Passados alguns momentos, Annika desligou o motor.
— O que vai acontecer agora? — perguntou Lisbeth afinal.
— O que vai acontecer é que a partir de hoje você não está mais sob tutela. Pode fazer o que bem entender. Embora a gente tenha sido muito firme hoje no tribunal, ainda resta uma boa papelada para ajeitar. Vai haver inquéritos de responsabilidade dentro da Comissão de Tutelas, questões sobre a indenização e coisas assim. E a instrução vai seguir seu curso.
— Eu não quero indenização. Quero que me deixem em paz.
— Entendo. Mas o que você acha não tem muita importância. Esse processo vai correr apesar de você. Proponho que contrate um advogado para defender seus interesses.
— Você não quer continuar sendo minha advogada?
Annika esfregou os olhos. Depois de passada toda a tensão daquele dia, sentia-se exaurida. Queria voltar para casa, tomar um banho e deixar que seu marido lhe fizesse uma massagem nas costas.
— Não sei. Você não confia em mim. E eu não confio em você. Não quero me ver envolvida num longo processo, em que tudo que vou receber vai ser um silêncio frustrante quando eu fizer uma sugestão ou quiser discutir alguma coisa.
Lisbeth ficou um bom tempo calada.
— Eu... eu não sou muito boa para me relacionar. Mas confio em você. Pareceu quase uma" desculpa.
— Pode ser. Mas não é problema meu se você é um zero à esquerda em relacionamentos. Só que isso se torna um problema se eu for te representar.
Silêncio.
— Você quer que eu continue sendo sua advogada? Lisbeth assentiu com a cabeça. Annika suspirou.
— Eu moro na Fiskargatan, número 9. Em frente à praça de Moseba-cke. Você pode me levar até lá?
Annika olhou sua cliente com o rabo dos olhos. Por fim, ligou o motor. Deixou que Lisbeth a guiasse até o endereço. Pararam a pouca distância do prédio.
— Bem — disse Annika. — Vamos fazer um teste. Minhas condições são as seguintes. Vou te representar. Quando eu quiser entrar em contato com você, quero que você atenda. Quando quiser saber como você quer que eu atue, vou querer respostas claras. Se eu ligar pedindo que você fale com algum policial, ou procurador, ou seja lá quem for, relacionado à investigação, é porque acho necessário. E exijo que você compareça ao local na hora marcada, sem criar caso. Você pode viver com isso?
— Está certo.
— E se você começar a criar caso, eu deixo de ser sua advogada. Entendeu?
Lisbeth fez que sim com a cabeça.
— Outra coisa. Não quero me ver no meio dessa história entre você e o meu irmão. Se tiver algum problema com ele, resolva com ele. Mas o fato é que ele não é seu inimigo.
— Eu sei. Vou dar um jeito nisso. Mas preciso de um tempo.
— O que você pretende fazer agora?
— Não sei. Você pode entrar em contato comigo por e-mail. Prometo responder o mais rápido possível, mas eu talvez não verifique a caixa postal todo dia...
— Você não vira uma escrava só porque tem uma advogada. Por enquanto é isso. E agora desça do carro. Estou exausta e quero ir para casa dormir.
Lisbeth abriu a porta e desceu do carro. Quando ia fechar a porta, parou. Parecia querer dizer alguma coisa, mas não encontrar as palavras. Por um momento, Annika a percebeu com um jeitinho quase vulnerável.
— Está bem — disse Annika. —Vá dormir. E não se meta em nenhuma encrenca nas próximas semanas.
Lisbeth Salander ficou parada na calçada olhando para Annika Giannini até os faróis traseiros do carro sumirem ao longe.
— Obrigada — disse ela afinal.
29. SÁBADO 16 DE JULHO – SEXTA-FEIRA 7 DE OUTUBRO
Deparou com seu Palm no móvel do hall de entrada. Também estavam ali as chaves do seu "carro e a bolsa que ela tinha perdido na noite em que Magge Lundin a agredira em frente ao prédio da Lundagatan. Havia cartas abertas e outras fechadas, que alguém fora pegar na caixa postal da Hornsgatan. Mikael Blomkvist.
Lentamente, deu uma volta pela parte mobiliada do apartamento. Havia vestígios dele por todos os lados. Ele dormira em sua cama e trabalhara em seu escritório. Usara sua impressora, e no cesto de papéis ela achou os rascunhos do texto dele sobre a Seção, anotações e rabiscos que ele depois jogou fora.
Ele comprou e deixou na geladeira um litro de leite, pão, queijo, pasta de peixe e dez pacotes de Billys Pan Pizza.
Na mesa da cozinha, ela encontrou um pequeno envelope branco com seu nome. Era um bilhete dele. A mensagem era sucinta. O número do seu celular. Mais nada.
Lisbeth Salander percebeu de repente que a bola estava com ela. Ele não pretendia procurá-la. Ele tinha concluído a matéria, devolvera as chaves dela e não estava pensando em dar notícias. Que cara mais teimoso, porra!
Ligou a cafeteira, preparou quatro torradas e em seguida se acomodou no recanto da janela, contemplando o parque de Djurgârden. Acendeu um cigarro e se pôs a refletir.
Tudo tinha acabado, no entanto sua vida lhe parecia mais travada do que nunca.
Miriam Wu tinha ido para a França. A culpa é minha se você quase morreu. Ela receara o momento de rever Miriam Wu, e tinha decidido que, assim que fosse libertada, esta seria sua primeira visita. E a Miriam não está em casa, está na França. Droga!
De repente sentiu-se em dívida com um monte de gente.
Holger Palmgren. Dragan Armanskij. Teria de procurá-los para agradecer. Paolo Roberto. E Praga, e Trinity. Se quisesse ser bem objetiva, até aqueles malditos tiras, Bublanski e Modig, tinham ficado do seu lado. E ela não gostava de dever nada para ninguém. Sentia-se como um peão num jogo sobre o qual não tinha o menor controle.
Maldito Super-Blomkvist. E talvez também Maldita Erika Berger, com suas lindas covinhas, belas roupas e autoconfiança.
Acabou, dissera Annika Giannini quando elas estavam deixando o Palácio da Polícia. Sim. O julgamento tinha acabado. Acabado para Annika Giannini. E acabado para Mikael Blomkvist, que publicara a sua matéria, ia aparecer na tevê e, de quebra, com certeza ainda ia ganhar um ou outro maldito prêmio.
Mas não tinha acabado para Lisbeth Salander. Aquele era só o primeiro dia do resto de sua vida.
Às quatro da manhã, parou de refletir. Jogou sua roupa de punk no chão do quarto e foi até o banheiro tomar um banho. Limpou toda a maquiagem que usara na audiência e vestiu uma calça leve de linho escuro, uma camiseta regata branca e uma jaqueta fina. Preparou uma maleta de mão com alguma roupa de baixo e camisetas, e escolheu sapatos baixos simples.