— O que você quer? — conseguiu articular.
— Uma associação com você. Você vai encerrar todos os seus outros casos em andamento e trabalhar para mim com exclusividade. Vai ganhar mais dinheiro do que jamais sonhou.
Ela explicou o que queria que ele fizesse e como imaginava as linhas gerais do caso.
— Quero permanecer invisível — ela explicou. — Você administra meus negócios. Tudo na mais perfeita legalidade. O que eu aprontar do meu lado nunca irá te atingir e nunca vai ter relação com os nossos negócios.
— Entendo.
— Então eu vou ser sua única cliente. Você tem uma semana para encerrar com os seus outros clientes e com todas as suas tramoiazinhas.
Ele também percebeu que acabava de receber uma proposta que nunca se repetiria. Refletiu por um minuto, e então aceitou. Tinha apenas uma pergunta a fazer.
— Como você sabe que eu não vou te sacanear?
— Faça isso, e você vai se arrepender pelo resto da sua vidinha miserável.
Não havia motivo nenhum para trapacear. Lisbeth Salander lhe propunha um trabalho que era potencialmente tão vantajoso que seria um absurdo colocá-lo em risco por uma ninharia. Enquanto ele não tivesse grandes pretensões e não fizesse besteira, seu futuro estava garantido.
Não tinha a intenção de sacanear Lisbeth Salander.
Portanto tinha se tornado honesto, ou pelo menos tão honesto quanto pode ser um advogado suspeito que administra uma pilhagem de proporções astronômicas.
Lisbeth não estava nem um pouco interessada em administrar suas finanças. A tarefa de MacMillan era aplicar o dinheiro dela e cuidar para que houvesse saldo suficiente nos cartões bancários que ela utilizava. Conversaram por algumas horas. Ela explicou como queria que suas finanças funcionassem. O trabalho dele consistia em cuidar desse funcionamento.
Boa parte da quantia roubada fora aplicada em fundos estáveis, o que a tornava financeiramente independente pelo resto da vida, mesmo que ela resolve-se gastar a rodo e levar uma existência perdulária. Esses fundos serviriam para abastecer o saldo de seus cartões de crédito.
Quanto ao restante do dinheiro, ele podia brincar de investir à vontade, contanto que não investisse em nada que criasse problemas com a polícia. Ele estava proibido de cometer pequenos furtos ridículos e fraudes insignificantes, que — se o azar resolvesse dar as caras — acarretariam investigações que, por sua vez, poderiam chamar a atenção para ela. Restava definir o quanto ele ganharia com o serviço.
— Os honorários iniciais são de quinhentas mil libras. Você vai poder pagar suas dívidas e ainda ficar com uma bela quantiazinha. Depois disso, você vai ganhar seu próprio dinheiro. Vai abrir uma empresa, tendo a mim como sócia. Vinte por cento dos lucros são seus. Quero que você seja suficientemente rico para não ficar tentado a fazer besteira, mas não rico o bastante para se acomodar.
Ele deu início a seu novo trabalho em 1º. de fevereiro. No final de março, já tinha quitado todas as suas dívidas pessoais e equilibrado seu orçamento. Lisbeth insistira para que ele priorizasse a organização de suas finanças e saísse do vermelho. Em maio, ele encerrou a sociedade com seu colega alcoólatra George Marks, a outra metade da MacMillan & Marks. Sentiu uma pontinha de culpa em relação a seu antigo parceiro, mas estava fora de cogitação envolver Marks nos negócios de Lisbeth Salander.
Ele conversou sobfe o assunto com Lisbeth quando, no início de julho, ela o visitou um dia em Gibraltar e descobriu que MacMillan estava trabalhando em seu apartamento e não no pequeno escritório numa rua afastada que lhe coubera até então.
— O meu sócio é alcoólatra e seria difícil para ele se virar nos nossos assuntos. Pelo contrário, ele representaria um grande fator de risco. Mas quando eu cheguei a Gibraltar, há quinze anos, ele me salvou a vida ao me aceitar como sócio.
Ela refletiu por uns dois minutos, observando MacMillan.
— Entendo. Você é um patife leal. Essa é, sem dúvida, uma qualidade admirável. Sugiro que você abra uma pequena conta para que ele se divirta à vontade. Cuide para que ele ganhe todo mês algumas notas de mil, o suficiente para viver.
— Você me dá sinal verde?
Ela fez que sim com a cabeça e olhou para o apartamento de solteirão dele. MacMillan morava numa quitinete numa das vielas próximas ao hospital. A única coisa agradável era a vista. Embora fosse difícil escapar daquela vista em Gibraltar.
— Você precisa de um escritório e de outro apartamento — disse ela
— Não deu tempo — ele respondeu.
— Tudo bem — disse ela.
E então ela o levou às compras e conseguiu um escritório de cento e trinta metros quadrados com uma pequena sacada com vista para o mar, no Buchanan House, em Queensway Quay, o que em Gibraltar era o suprassumo. Contratou um arquiteto de interiores para repaginar e mobiliar o local.
MacMillan recordou que, enquanto ele se ocupava da papelada, Lisbeth acompanhara pessoalmente a instalação do sistema de alarme, do equipamento de informática e do armário de segurança, esse mesmo que ela havia vasculhado antes de ele chegar ao escritório naquela manhã.
— Caí em desgraça? — ele perguntou.
Ela largou a pasta de correspondência que estava examinando.
— Não, Jeremy. Você não caiu em desgraça.
— Que bom — disse ele, e foi buscar um café. — Você realmente tem o dom de aparecer quando a gente menos espera.
— Andei ocupada nos últimos tempos. Eu só queria me atualizar sobre as últimas notícias.
— Se entendi bem a história toda, você esteve sendo procurada por triplo assassinato, levou uma bala na cabeça e foi acusada de mais um monte de crimes. Teve uma hora em que fiquei realmente preocupado. Achei que você ainda estivesse atrás das grades. Você fugiu?
— Não. Fui absolvida de todas as acusações e me puseram em liberdade. Você ouviu dizer o quê, exatamente?
Ele hesitou um segundo.
— Certo. Não vou mentir. Quando percebi que você estava na pior, contratei uma agência de tradução, que foi me dissecando todos os jornais suecos e me informando do desenrolar da história. Estou relativamente bem informado.
— Se você se baseou no que saiu nos jornais, não pode estar bem informado. Mas imagino que tenha descoberto alguns segredos sobre mim.
Ele fez que sim com a cabeça.
— E agora, o que vai acontecer? — perguntou MacMillan. Ela olhou para ele, surpresa.
— Nada. Vai continuar tudo igual. A nossa relação não tem nada a ver com os meus problemas na Suécia. Me conte o que aconteceu durante a minha ausência. Como é que você se virou?
— Eu não bebo — disse ele. — Se é o que você quer dizer.
— Não. A sua vida pessoal não é assunto meu, desde que não interfira nos meus negócios. O que eu quero dizer é: estou mais ou menos rica do que um ano atrás?
Ele puxou a cadeira das visitas e se sentou. Não via o menor problema em Lisbeth Salander estar sentada no lugar dele. Não havia motivo para entrar numa luta de poder com ela.
— Você me entregou dois bilhões e quatrocentos milhões de dólares. Investimos duzentos milhões em fundos para você. O resto você me deu para brincar.
— Isso.
— Os seus fundos pessoais só variaram nos juros. Posso aumentar seus rendimentos se...
— Não estou interessada em aumentar meus rendimentos.
— Certo. Você só gastou uma quantia ridícula. As maiores despesas foram o apartamento que comprei para você e o fundo beneficente para aquele advogado, o Palmgren. No mais, você teve um consumo normal, pequeno até. Os juros foram vantajosos. Você está mais ou menos com o que tinha no início.
— Ótimo.
— O resto eu investi. No ano passado não conseguimos grande coisa. Eu estava meio enferrujado e levei algum tempo até reaprender como o mercado funciona. Tivemos despesas. Este ano é que vamos começar a ter lucro. Enquanto você esteve presa, tivemos uma entrada de povico mais de sete milhões. De dólares, quero dizer.
— Dos quais vinte por cento são para você.
— Dos quais vinte por cento são para mim.
— Está satisfeito?
— Ganhei mais de um milhão de dólares em seis meses. Sim Estou satisfeito.
— Olha... não seja guloso demais. Você pode se afastar quando estiver satisfeito. Mas continue administrando meus negócios algumas horas, aqui e ali.
— Dez milhões de dólares — disse ele.
— Como?
— Depois que eu juntar dez milhões de dólares, eu paro. Foi bom você ter vindo. Temos umas coisas para conversar.
— Diga-
Ele afastou as mãos.
— Essa coisa toda representa tanto dinheiro que entro meio em pânico. Não sei como lidar com isso. Não sei qual o objetivo das operações, fora ganhar mais e mais. Para que vai servir esse dinheiro todo?
— Não sei.
— Nem eu. Mas o objetivo do dinheiro pode acabar virando o próprio dinheiro. E isso não é bom. Por isso, resolvi parar depois que juntar dez milhões. Não quero mais essa responsabilidade.
— Certo.
— Antes de eu me afastar, queria que você decidisse como quer que sua fortuna seja administrada no futuro. Precisa haver um objetivo, diretrizes e uma organização que assuma a responsabilidade.
— Humm.
— E impossível uma pessoa só aplicar tanto dinheiro assim em múltiplas aplicações. Eu dividi a quantia, de um lado em investimentos fixos a longo prazo: imóveis, títulos, esse tipo de coisa. Tenho uma lista completa no computador.
— Eu li.
— A outra parte eu uso para especular, mas é tanto dinheiro para administrar que não estou dando conta. Por isso, abri uma empresa de investimentos em Jersey. Por enquanto, você tem seis funcionários em Londres. Dois jovens investidores competentes mais um pessoal de escritório.
— A Yellow Ballroom Ltd.? Eu estava mesmo me perguntando o que era isso.
— É a nossa empresa. Aqui, em Gibraltar, eu contratei uma secretária e um jovem e promissor advogado... aliás, eles devem chegar daqui a uma meia hora.
— Ahã. Molly Flint, quarenta e um anos, e Brian Delaney, vinte e seis
anos.
— Você quer conhecer os dois?
— Não. O Brian é seu amante?
— O quê? Não!
Ele pareceu chocado.
— Eu não misturo...
— Muito bem.
— Aliás... carinhas jovens não me interessam... quero dizer, os caras sem experiência.
— Eu sei, você tem atração por uns caras com uma aparência mais sarada do que um garotão pode oferecer. Continua não sendo assunto meu. Mas, Jeremy...
— Sim?
— Tome cuidado.
Lisbeth não tinha programado ficar em Gibraltar mais do que duas semanas para reorientar a sua vida. A certa altura, porém, descobriu que não tinha a menor idéia do que ia fazer nem de que rumo tomar. Ficou doze semanas. Verificava seu correio eletrônico uma vez por dia e respondia com docilidade aos e-mails de Annika Giannini nas raras vezes em que mandava notícias. Não dizia onde estava. Não respondia aos outros e-mails.
Continuava freqüentando o Harry's Bar, mas agora só aparecia no final da tarde para tomar uma cerveja. Passava a maior parte do dia no Rock, ou no terraço, ou na cama. Teve mais um relacionamento casual, com um oficial trintão da Marinha britânica, mas foi apenas um caso de uma noite e, em suma, uma experiência desinteressante.
Ela percebeu que estava se entediando.
No início de outubro, jantou com Jeremy MacMillan. Os dois tinham se visto poucas vezes durante sua estada. Já anoitecera, e eles bebiam um vinho branco frutado e discutiam a melhor maneira de empregar os bilhões de Lisbeth. De repente, ele a surpreendeu perguntando-lhe o que a estava perturbando.
Ela olhou para ele enquanto refletia. Então, de forma também surpreendente, falou na sua relação com Miriam Wu, de como ela fora espancada e quase morta por Ronald Niedermann. Por sua culpa. A não ser por um alô transmitido por Annika Giannini, Lisbeth não tivera mais notícia de Miriam Wu, que agora estava morando na França.
Jeremy MacMillan ficou algum tempo sem falar nada.
— Você está apaixonada por ela? — perguntou de repente.
Lisbeth Salander pensou antes de responder. Por fim, balançou a cabeça.
— Não. Não acho que eu seja do tipo que se apaixona. Ela era uma amiga. E transava muito bem.
— Ninguém pode evitar de se apaixonar — disse ele. — A gente talvez queira negar, mas a amizade é sem dúvida a forma mais comum de amor.
Ela olhou para ele, estupefata.
— Você vai ficar chateada se eu disser uma coisa pessoal?
— Não.
— Se manda pra Paris, caramba.
Ela aterrissou no aeroporto Charles de Gaulle às duas e meia da tarde, pegou o ônibus para o Arco do Triunfo e passou duas horas percorrendo as redondezas em busca de um quarto de hotel. Foi na direção do sul e do Sena, e só muito tempo depois encontrou por fim um quarto no pequeno Hotel Victor-Hugo, na Rue Copernic.
Tomou um banho e ligou para Miriam Wu. Elas se encontraram por volta das nove da noite num bar perto de Notre-Dame. Miriam Wu usava uma camisa branca e um blazer. Estava sublime. Lisbeth sentiu-se imediatamente desconfortável. Trocaram beijos.
— Desculpe eu não ter te dado notícias nem ter aparecido no julgamento — disse Miriam Wu.
— Tudo bem. O julgamento acabou sendo a portas fechadas.
— Passei três semanas no hospital e, quando voltei para a Lundagatan, estava tudo um caos. Eu não conseguia dormir. Tinha pesadelos com esse canalha do Niedermann. Liguei para a minha mãe dizendo que queria vir morar com eles.
Lisbeth meneou a cabeça.
— Me desculpe — disse Miriam Wu.
— Não seja boba. Eu é que vim te pedir desculpas.
— Por quê?
— Eu fui muito burra. Em nenhum momento me ocorreu que eu estivesse colocando sua vida em perigo quando deixei o apartamento para você mas continuei oficialmente morando nele. Se você quase morreu, é culpa minha. Entendo que você me odeie.
Miriam pareceu estupefata.
— Isso nem me passou pela cabeça. Quem tentou me matar foi o Ronald Niedermann. Não você.
Permaneceram algum tempo em silêncio.
— Está bem — disse Lisbeth afinal.
— Certo — disse Miriam Wu.
— Eu não vim atrás de você porque estou apaixonada — disse Lisbeth. Miriam fez um gesto de assentimento com a cabeça.
— Você é superboa dê cama, mas eu não estou apaixonada por você — enfatizou Lisbeth.
— Lisbeth... eu acho...
— O que eu queria dizer é que eu espero que... droga.
— O quê?
— Eu não tenho muitos amigos... Miriam Wu assentiu com a cabeça.
— Vou ficar em Paris por um tempo. Meu curso na Suécia não deu certo e acabei me matriculando na universidade daqui. Vou ficar no mínimo um ano.
Lisbeth fez que sim com a cabeça.
— Depois, não sei. Mas vou voltar para Estocolmo. Vou pagar as taxas do apartamento da Lundagatan, eu queria ficar com ele. Se você topar.
— O apartamento é seu. Você faz o que quiser com ele.
— Lisbeth, você é mesmo especial — disse ela. — Eu quero continuar sendo sua amiga.
Conversaram por cerca de duas horas. Lisbeth não tinha nenhum motivo para esconder seu passado de Miriam Wu. Qualquer pessoa que tivesse tido acesso aos jornais suecos conhecia o caso Zalachenko, e Miriam o acompanhara com interesse. Ela contou com detalhes o que acontecera em Nykvarn na noite em que Paolo Roberto salvara sua vida.
Depois, foram até o quarto de estudante de Miriam Wu, perto da universidade.