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Lisbeth resmungou um pouco, mas acabou cedendo e enfiou a pasta na bolsa. Prometeu que iria ler o inventário e dar instruções para que Annika Giannini pudesse agir em seu nome. A seguir, concentrou-se em sua cerveja. Annika lhe fez companhia por mais uma hora, atendo-se à água mineral.

Somente muitos dias depois, quando Annika Giannini ligou e insistiu no assunto do inventário, é que Lisbeth Salander tirou da bolsa os papéis amassados e os ajeitou. Sentou-se à mesa da cozinha de seu apartamento da Fiskargatan e leu os documentos.

O inventário da sucessão era composto por várias páginas e continha informações das mais variadas — o aparelho de jantar que havia no armário da cozinha de Gosseberga, roupas, o valor de câmeras fotográficas e de outros objetos pessoais. Alexander Zalachenko não deixara muita coisa valiosa, e nenhum daqueles objetos tinha qualquer significado afetivo para Lisbeth Salander. Ela pensou um pouco e concluiu que sua atitude não mudara desde que se encontrara com Annika no bar. Venda essa porcaria toda e queime o dinheiro. Algo do gênero. Estava absolutamente segura de que não queria um único ore de seu pai, mas também tinha bons motivos para desconfiar que as verdadeiras posses de Zalachenko estavam enterradas em algum lugar onde oficial de justiça nenhum teria ido procurar.

Em seguida, abriu o descritivo do prédio industrial de Norrtãlje.

Tratava-se de uma propriedade de vinte mil metros quadrados, dividida em três construções, situada nas proximidades de Skederid entre Norrtãlje e Rimbo.

O oficial de justiça incumbido do inventário fizera uma rápida visita ao local só para constatar que se tratava de uma antiga olaria, mais ou menos abandonada desde que encerrara as atividades nos anos 1970. Ele observara que o local estava em péssimo estado e que não poderia ser reformado para que abrigasse outra atividade. Com péssimo estado ele queria dizer, entre outras coisas, que o chamado "edifício norte" tinha sido devastado pelo fogo e desabara. Alguns consertos, no entanto, haviam sido feitos no "edifício principal".

O que intrigou Lisbeth Salander foi o histórico. Alexander Zalachenko tinha adquirido esse bem imóvel por uma ninharia em 12 de março de 1984, mas Agneta Sofia Salander é que aparecia como compradora.

A mãe de Lisbeth Salander tinha, portanto, sido a proprietária do imóvel. Sua participação, contudo, cessara em 1987. Zalachenko comprara os prédios por duas mil coroas. A partir daí, eles tinham aparentemente ficado abandonados por mais de quinze anos. O inventário da sucessão registrava que, em 17 de setembro de 2004, a empresa KAB contratara a empresa de engenharia NorrBygg S. A. para realizar uma reforma que incluía reparo de pisos e telhado, além de melhorias nas redes de água e energia elétrica. As obras tinham se estendido por quase dois meses, até 30 de novembro de 2004, quando foram interrompidas. NorrBygg enviara uma fatura, que havia sido paga.

Essa propriedade deixada por seu pai era intrigante. Lisbeth Salander franziu o cenho. Seria compreensível seu pai possuir um prédio industrial para ele mostrar que sua empresa legal, a KAB, tinha uma atividade qualquer ou alguns bens. Era compreensível ele ter usado a mãe de Lisbeth Salander como laranja, ou nome de fachada, na ocasião da compra, para em seguida se apoderar do contrato de compra e venda.

Mas por que diabos ele gastara, em 2004, quase 440 mil coroas para reformar um prédio caindo aos pedaços que, de acordo com o inventariante, continuava sem ser usado em 2005?

Lisbeth Salander estava desconcertada mas não muito interessada. Fechou a pasta e ligou para Annika Giannini.

— Eu li o inventário. Minha decisão permanece igual. Venda essa porcaria toda e faça o que quiser com o dinheiro. Não quero ficar com nada que era dele.

— Certo. Vou cuidar para que metade do valor seja depositada em uma conta para sua irmã. Depois, vou sugerir a você algumas possibilidades de doação.

— Ahã — disse Lisbeth, e desligou sem dizer mais nada.

Sentou-se no recanto da janela, acendeu um cigarro e ficou contemplando a bacia de Saltsjõn.

Lisbeth Salander passou a semana seguinte dando assistência a Dragan Armanskij num caso urgente. Tratava-se de seguir a pista e identificar uma pessoa suspeita de ter sido contratada para seqüestrar uma criança cuja guarda era motivo de conflito no divórcio de uma sueca e um cidadão libanês. A contribuição de Lisbeth Salander se limitava a controlar os e-mails da pessoa suspeita de ser o mandante. O serviço terminou quando as duas partes, reconciliadas, aceitaram um acordo diante do juiz.

Dia 18 de dezembro era o domingo anterior ao Natal. Lisbeth acordou às seis e meia e pensou que deveria comprar um presente de Natal para Hol-ger Palmgren. Refletiu por um instante na possibilidade de comprar outros presentes — quem sabe para Annika Giannini. Sem pressa, levantou-se, tomou banho e desfrutou calmamente seu café da manhã, composto por café, torradas com queijo e geleia de laranja.

Não tinha nenhum plano específico para aquele dia e passou algum tempo tirando um monte de papéis e jornais de seu escritório. Nisso, seu olhar bateu na pasta do inventário. Abriu-o e releu a página com a descrição do prédio industrial de Norrtãlje. Por fim, deu um suspiro. Tudo bem. Preciso descobrir o que ele estava aprontando.

Vestiu uma roupa quente e botas de cano alto. Eram oito e meia quando saiu com seu Honda cor de vinho da garagem do subsolo do prédio da Fiskar-gatan, n- 9. Fazia um frio intenso, mas o dia estava ensolarado e o céu, azul-pastel. Passou por Slussen e pela perimetral da Klaraberg e ziguezagueou pela E18 em direção a Norrtãlje. Não tinha pressa. Eram quase dez horas quando parou num posto de gasolina a poucos quilômetros de Skederid para perguntar o caminho da antiga olaria. Quando estava estacionando, percebeu que não seria necessário perguntar.

Encontrava-se num morro que dava para um pequeno vale do outro lado da estrada. À esquerda, na estrada de Norrtãlje, havia uma indústria de tintas e material de construção e um terreno de estacionamento para maquinado de terraplanagem. À direita, beirando a zona industrial, a cerca de quatrocentos metros da estrada principal, erguia-se um prédio sombrio de tijolo aparente com uma chaminé em ruínas. A fábrica tinha o aspecto de uma última sentinela da zona industrial, meio isolada por uma estrada e pequeno riacho. Ela contemplou o prédio, pensativa, e se perguntou o que a levara a reservar o dia para fazer uma visita à cidade de Norrtãlje.

Virou a cabeça e olhou na direção do posto de gasolina, aonde acabava de chegar um caminhão peso pesado ostentando placas TIR.* De súbito, deu--se conta de que estava na artéria principal do porto mercante de Kapellskãr, por onde passava boa parte das mercadorias que transitavam entre a Suécia e os Estados bálticos.

Voltou a ligar o carro e retomou a estrada, virando logo em seguida na entrada para a olaria abandonada. Estacionou no meio do pátio e desceu do carro. A temperatura estava abaixo de zero, ela enfiou um boné preto e luvas de couro pretas.

O prédio principal tinha dois andares. No térreo, as janelas estavam todas condenadas, cobertas com chapas de compensado. No andar de cima, ela notou um bom número de vidros quebrados. A olaria era muito maior do que ela imaginara, e parecia tremendamente deteriorada. Lisbeth não conseguia distinguir um vestígio sequer de reforma. Não viu nenhum sinal de vida, mas reparou numa camisinha usada jogada no meio do pátio e que parte da fachada tinha sido alvo de artistas grafiteiros.

Por que o Zalachenko fazia tanta questão de ser dono desse prédio?

Contornou a olaria e, nos fundos, deparou com a ala demolida. Constatou que todas as portas do prédio principal estavam fechadas com correntes e cadeados. Por fim, examinou, frustrada, uma porta lateral. Em todas as outras, os cadeados estavam fixados com parafusos firmes e placas antirroubo O cadeado da porta lateral parecia mais frágil e estava preso apenas por um prego grande. Ora, dane-se, afinal eu sou a proprietária. Deu uma olhada ao redor, encontrou um cano de metal em cima de um monte de tralha e o usou como alavanca para quebrar a presilha do cadeado.