Entrou numa escada que se abria para o céu. Com as janelas tapadas, reinava uma escuridão quase total, exceção feita a algumas esparsas estrias de luz que se esgueiravam pela beirada das placas de aglomerado. Ela ficou parada por alguns minutos, até seus olhos se habituarem à escuridão. Aos poucos foi distinguindo um amontoado de velharias, banquinhos abandonados, peças usadas de maquinaria e madeira de construção, numa sala que devia medir uns quarenta e cinco metros de comprimento por vinte de largura, com o teto sustentado por pilares maciços. Os antigos fornos da olaria tinham virado tanques cheios de água e havia bolor e poças enormes no piso. Daquela bagunça se desprendia um cheiro de mofo e podridão. Ela franziu as narinas.
Lisbeth deu meia-volta e subiu a escada. O andar de cima estava seco e compunha-se de duas salas, uma seguida à outra, de pouco mais de vinte metros por vinte, com pelo menos oito metros de pé-direito. Janelas altas junto ao telhado eram inacessíveis. Não permitiam, portanto, que se visse o lado de fora, mas traziam uma luz agradável. Ali também reinava a mais incrível miscelânea. Ela passou em frente a dúzias de caixotes de embalagem de um metro de altura empilhadas. Tentou erguer um deles. O caixote nem se moveu. Leu Máquina partes 0-A77 escrito na madeira. Abaixo, o mesmo texto em russo. Ela reparou num monta-cargas a meio caminho da primeira sala.
Uma espécie de depósito de máquinas que não poderiam gerar fortuna alguma enquanto ficassem enferrujando naquela antiga olaria.
Ela foi até a sala dos fundos e percebeu que era ali que a reforma tinha sido feita. A sala estava repleta de velharias, caixotes e móveis de escritório organizados de uma forma labiríntica. Uma parte do piso fora desocupada e recebera um laminado novo. Lisbeth observou que a reforma parecia ter sido interrompida de forma abrupta. As ferramentas, uma serra circular e uma serra de fita, uma pregadora automática, um pé de cabra, uma barra de ferro, assim como caixas de ferramentas, continuavam ali. Ela fez uma careta. Mesmo que as obras tenham sido interrompidas, a empresa responsável deveria ter levado o material. Mas também essa pergunta foi respondida quando ela pegou uma chave de fenda e constatou que a inscrição no cabo estava em russo. Zalachenko tinha importado as ferramentas e também, quem sabe, os operários.
Ela se aproximou da serra circular e girou o botão. Uma lâmpada verde se acendeu. Havia energia elétrica. Desligou a máquina.
No fundo da sala, havia três portas que davam para peças menores, talvez os antigos escritórios. Ela experimentou a maçaneta da porta que ficava mais ao norte. Trancada. Olhou em torno e foi até onde estavam as ferramentas para pegar um pé de cabra. Levou algum tempo para conseguir abrir a porta.
A peça estava na mais completa escuridão e cheirava a mofo. Tateou com a mão e achou um interruptor que acendeu uma lâmpada simples no teto. Lisbeth ficou estarrecida.
A mobília consistia em três camas com colchões sujos e outros três colchões colocados no chão. Lençóis sujos por toda parte. A direita, uma chapa elétrica e algumas panelas ao lado de uma torneira enferrujada. A um canto, um balde de metal e um rolo de papel higiênico.
Alguém havia morado ali* Várias pessoas.
Então, reparou que a porta não tinha maçaneta do lado de dentro do quarto. Um arrepio gelado percorreu suas costas.
No fundo da peça, havia um guarda-roupa grande. Abriu-o e deparou com duas malas. Pegou a que estava em cima. Havia roupas dentro. Vasculhou a mala e tirou de lá uma saia cuja etiqueta estava escrita em russo. Achou uma bolsa e esvaziou seu conteúdo no chão. Dentre a maquiagem e outras miudezas, achou um passaporte emitido para uma mulher morena de mais ou menos vinte anos. O texto estava em russo. Ela decifrou o nome: Valentina.
Lisbeth Salander saiu lentamente da peça com uma sensação de déjà-vu. Examinara um cenário de crime muito similar num porão de Hedestad, dois anos e meio antes. Roupas de mulher. Uma prisão. Ficou um bom tempo parada, refletindo. Preocupava-a que o passaporte e as roupas ainda estivessem ali. Um mau presságio.
Então voltou até onde estavam as ferramentas e revirou tudo ali até encontrar uma lanterna potente. Verificou as pilhas e em seguida voltou ao térreo e entrou na sala grande. A água das poças penetrou em suas botas.
Quanto mais ela avançava pela sala, mais o cheiro de putrefação se tornava insuportável. O fedor parecia atingir seu ponto máximo no meio do cômodo. Deteve-se diante da base de um dos antigos fornos para tijolos. Estava com água quase até a borda. Iluminou a água escura com a lanterna, mas não conseguiu ver nada. A superfície estava parcialmente coberta de algas que formavam um magma verde. Olhou em volta e encontrou uma barra de concreto armado de três metros de comprimento. Enfiou-a dentro do tanque e mexeu. A profundidade da água era de apenas uns cinqüenta centímetros. Quase de imediato, deparou com uma resistência. Fez força durante alguns segundos até que o corpo subisse à superfície, a começar pelo rosto, uma máscara contorcida de morte e decomposição. Respirou pela boca, contemplou o rosto à luz da lanterna e constatou que se tratava de uma mulher, talvez a mulher do passaporte do piso superior. Não entendia sobre a velocidade de decomposição em água fria e estagnada, mas o corpo parecia estar naquele tanque fazia algum tempo.
De repente, viu algo se mexendo na superfície da água. Algum tipo de larva.
Deixou o corpo voltar para o fundo da água e continuou procurando com a barra. Na borda do tanque, encostou no que parecia ser outro corpo. Recolheu a barra da água, deixou-a no chão e ficou parada em frente ao tanque, mergulhada em pensamentos.
Lisbeth Salander retornou ao andar de cima. Usou o pé de cabra para abrir a porta do meio. O cômodo estava vazio e não parecia ter sido usado.
Aproximou-se da última porta e posicionou o pé de cabra, mas, antes mesmo que começasse a forçá-la, a porta se entreabriu. Não estava trancada. Abriu-a de par em par empurrando com o pé de cabra e olhou em torno.
A sala tinha uns trinta metros quadrados. As janelas ficavam a uma altura normal e davam para o pátio em frente à olaria. Avistou o posto de gasolina no morro acima da estrada. Havia ali uma cama, uma mesa e uma bancada com louça em cima. Então viu uma sacola aberta no chão. Cédulas de dinheiro. Perplexa, deu dois passos à frente antes de perceber que fazia calor ali dentro. Seu olhar foi atraído por uma estufa elétrica no meio da sala. Avistou uma cafeteira elétrica. A luz vermelha estava acesa.
Tem alguém morando aqui. Não estou sozinha.
Deteve-se e logo em seguida saiu correndo. Passou pela sala do fundo, pelas portas intermediárias e se precipitou para a saída na primeira sala. Freou a cinco passos da escada, ao ver que a porta tinha sido fechada com um cadeado. Estava presa. Virou-se lentamente e olhou em volta. Não viu nada.
— Oi, mana — disse uma voz clara, vindo da lateral.
Virou a cabeça e deu com a estatura imensa de Ronald Niedermann se materializando junto a uns caixotes. Ele tinha uma baioneta na mão.
— Eu tinha esperança de voltar a te ver — disse Niedermann. — Na primeira vez foi tudo muito rápido.
Lisbeth olhou em volta.
— Não adianta — disse Niedermann. — Só estamos nós dois aqui, e a única saída é essa porta trancada atrás de você.
Lisbeth voltou o olhar para seu meio-irmão.
— Como está a sua mão? — perguntou.
Niedermann continuava sorrindo para ela. Ergueu a mão direita para lhe mostrar. Estava sem o dedo mínimo.
— Infeccionou. Fui obrigado a amputar.
Ronald Niedermann sofria de analgesia congênita e era incapaz de sentir qualquer tipo de dor. Lisbeth acertara a mão dele com uma pazada, em Gosseberga, poucos segundos antes de Zalachenko disparar uma bala na cabeça dela.