Выбрать главу

Atônito, voltou ao seu quartinho confortável e passou a noite toda acordado, esperando os monstros voltarem. Eles repetiram o ataque ao amanhecer, e mais uma vez foi preciso enfrentá-los. E eles fugiram novamente.

Ele oscilava entre o pânico e a euforia.

A vida inteira tinha sido perseguido por essas criaturas das trevas e, pela primeira vez, sentia que dominava a situação. Não fazia nada. Comia. Dormia. Pensava. Uma vida tranqüila.

Os dias se transformaram em semanas, o verão chegou. Pelo rádio e pelos jornais vespertinos, acompanhou o declínio da caçada a Ronald Niedermann. Observou com interesse os relatos do assassinato de Alexander Zalachenko. Chega a ser engraçado! Um maluco vai e põe um ponto final na vida do Zalachenko. Em julho, seu interesse se reavivou com o julgamento de Lisbeth Salander. Ficou atônito ao ver que ela tinha sido absolvida. Alguma coisa estava errada. Ela estava livre, enquanto ele era obrigado a se esconder.

Comprou a Millennium no posto de gasolina e leu a edição sobre Lisbeth Salander, Alexander Zalachenko e Ronald Niedermann. Um jornalista chamado Mikael Blomkvist descrevia Ronald Niedermann como um assassino e doente mental, um psicopata. Niedermann fez uma careta.

De repente, chegou o outono e ele ainda não tinha ido embora. Quando veio o frio, comprou uma estufa elétrica no posto de gasolina. Não sabia explicar a si mesmo por que não deixava a fábrica.

As vezes apareciam alguns jovens de carro, eles estacionavam no pátio em frente à olaria, mas ninguém nunca fora perturbá-lo nem tentara entrar no prédio. Em setembro, um carro estacionara no pátio e um homem de parca azul mexera na maçaneta das portas e dera uma volta pelo terreno, olhando tudo por ali. Niedermann o observara da janela do andar de cima.

De tempos em tempos, o homem tomava notas num caderninho. Ficara uns vinte minutos, então dera uma última olhada em volta, entrara no carro e deixara o local. Niedermann respirou aliviado. Não tinha idéia de quem era aquele homem nem do que ele procurava, mas ele parecera estar fazendo uma espécie de avaliação dos prédios. Niedermann não relacionou a morte de Zalachenko com o conseqüente inventário de sucessão.

Ele pensava muito em Lisbeth Salander. Não esperava, nunca mais, cruzar com ela, porém ela o fascinava e o assustava. Ronald Niedermann não tinha medo dos vivos. Mas sua irmã — sua meia-irmã — causara-lhe uma impressão extraordinária. Ninguém o tinha vencido como ela vencera. Ela havia ressurgido apesar de ele a ter enterrado. Ela havia ressurgido e o perseguira. Sonhava com ela todas as noites. Acordava encharcado de um suor frio e percebia que ela substituíra seus fantasmas habituais.

Em outubro, tomou uma decisão. Não deixaria a Suécia antes de encontrar sua irmã e acabar com ela. Não tinha nenhum plano, mas sua vida ganhara um objetivo. Não sabia onde ela estava nem como poderia seguir seu rastro. Ficava sentado na sala do andar de cima da olaria, olhando pela janela, dia após dia, mês após mês.

Até que o Honda cor de vinho estacionou um dia em frente ao prédio e, para sua imensa surpresa, ele viu Lisbeth Salander descer do carro. Deus é misericordioso, pensou. Lisbeth Salander ia ter o mesmo destino que as duas mulheres ali no térreo, cujos nomes esquecera. Sua espera chegara ao fim e agora ele finalmente poderia seguir sua vida.

Lisbeth Salander avaliou a situação e achou que ela estava longe de estar sob controle. Seu cérebro trabalhava sob pressão. Clique, clique, clique. Ainda tinha o pé de cabra na mão, mas percebeu que era uma arma demasiado frágil contra um homem que não sentia dor alguma. Estava trancada numa área de aproximadamente mil metros quadrados junto com um robô assassino saído direto do inferno.

Quando Niedermann de repente se moveu em sua direção, ela jogou o pé de cabra em cima dele. Ele se esquivou com tranqüilidade. Lisbeth Salander pôs o pé num banquinho, tomou impulso e se ergueu sobre um caixote de embalagem, continuando a escalar feito uma aranha os dois caixotes seguintes. Deteve-se e olhou para Niedermann, a pouco mais de quatro metros abaixo.

— Desça — disse ele com calma. — Você não tem como fugir. O fim é inevitável.

Ela se perguntou se ele tinha uma arma de fogo. Isso, sem dúvida, seria um problema.

Ele se inclinou à frente, levantou uma cadeira e jogou-a em cima dela. Ela se abaixou.

De repente, Niedermann pareceu irritado. Pôs o pé no banquinho e começou a subir em sua direção. Ela esperou ele chegar quase no alto antes de tomar impulso em duas passadas rápidas, pular por cima do vão central e aterrissar sobre um caixote alguns metros adiante. Desceu até o chão para pegar o pé de cabra.

Niedermann não era desajeitado, mas sabia que não podia saltar sobre os caixotes, arriscando-se a torcer o pé. Teria de descer devagarinho, até tocar o pé no chão. Era obrigado a se mexer lenta e metodicamente; passara a vida inteira dominando seu corpo. Já estava quase lá embaixo quando ouviu passos atrás de si e mal teve tempo de virar o corpo para aparar o golpe de pé de cabra com o ombro. Perdeu a baioneta.

Lisbeth largou o pé de cabra no instante em que desfechou o golpe. Não teve tempo de pegar a baioneta, mas empurrou-a com o pé para perto dos banquinhos. Em seguida, desviou-se de um tapa da mão imensa de Niedermann e escapou para cima dos caixotes do outro lado do vão central. Com o rabo do olho, viu Niedermann se esticar para agarrá-la. Rápida como um raio, levantou as pernas. Os caixotes de embalagem formavam duas fileiras, empilhados em três níveis de um lado a outro do vão central e em dois níveis do lado externo. Desceu ao segundo nível e, arqueando as costas, usou toda a força das pernas. O caixote devia pesar pelo menos duzentos quilos. Sentiu que ele se moveu, e então caiu no vão central.

Niedermann viu o caixote caindo e mal teve tempo de se jogar para o lado. Um canto do caixote bateu em seu peito, porém ele se safou sem grandes danos. Deteve-se. Mas não é que ela está mesmo resistindo! Subiu na direção de Lisbeth. A cabeça dele estava alcançando a altura do terceiro nível quando ela desfechou-lhe um pontapé. Sua bota pesada atingiu a testa de Niedermann. Ele resmungou e se ergueu para cima dos caixotes. Lisbeth

Salander fugiu saltando mais uma vez sobre os caixotes do outro lado do vão central. Deixou-se cair atrás deles e sumiu de vista. Ele escutou seus passos e viu quando ela passou pela porta da sala do fundo.

Lisbeth Salander lançou um olhar avaliador à sua volta. Clique. Clique. Sabia que não tinha nenhuma chance. Podia sobreviver enquanto conseguisse se desviar das patas enormes de Niedermann e mantê-lo à distância, mas assim que cometesse um erro — o que aconteceria cedo ou tarde —, seria a morte. Tinha de evitá-lo a qualquer custo. Se ele encostasse a mão nela, seria uma vez só e o combate estaria terminado.

Precisava de uma arma.

Uma pistola. Uma metralhadora. Um obus perfurador e explosivo. Uma mina antipessoal.

Qualquer arma de merda, droga!

Mas não havia armas ali.

Olhou ao redor.

Nenhuma arma.

Só ferramentas. Clique, clique. Seu olhar bateu numa serra de fita, mas teria de ser muito persuasiva para fazê-lo se deitar na bancada. Clique. Avistou uma barra de ferro que poderia servir de lança, mas era pesada demais para ser manejada de forma eficaz. Clique. Deu uma olhada para a porta e viu que Niedermann descera dos caixotes, a uns quinze metros dali. Vinha novamente em sua direção. Ela começou a se afastar da porta. Restavam-lhe uns cinco segundos, talvez, antes que Niedermann a alcançasse. Deu uma última olhada nas ferramentas.

Uma arma... ou um esconderijo. Ela estacou de repente.

Niedermann não tinha pressa. Sabia que não havia saída e que, mais cedo ou mais tarde, pegaria sua irmã. Mas não havia como negar que ela era perigosa. Afinal, era filha de Zalachenko. E ele não queria sair ferido. Era melhor deixar que ela esgotasse suas forças.

Ele parou junto à porta que dava para a sala dos fundos e examinou o monte de ferramentas, lâminas de assoalho semi-instaladas e móveis. Ela não estava visível.