— Sei que você está aí. Vou te encontrar.
Ronald Niedermann parou de se mexer e escutou. A única coisa que ouviu foi a própria respiração. Ela tinha se escondido. Ele sorriu. Ela o desafiava. Sua visita se transformara, de repente, num jogo entre irmãos.
Nisso, ouviu um farfalhar descuidado em algum lugar no meio da sala. Virou a cabeça, sem conseguir identificar de onde vinha o ruído. Então sorriu outra vez. No meio da sala, meio distante do resto de toda aquela tralha, havia uma bancada de trabalho de cinco metros de comprimento, de madeira, com uma fileira de gavetas e portas corrediças na parte inferior.
Aproximou-se do móvel pela lateral e olhou atrás dele para ter certeza de que ela não estava tentando enganá-lo. Nada.
Ela está escondida dentro do móvel. Que imbecilidade.
Arrancou a primeira porta da parte esquerda do armário.
Ouviu imediatamente o barulho de alguém se movimentando dentro do móvel. O ruído vinha da parte central. Deu dois passos rápidos e abriu a porta com ar triunfante.
Nada.
Então ouviu uma série de detonações secas parecidas com tiros de pistola. O som chegou tão rápido que de início custou a entender de onde vinha. Virou a cabeça. Em seguida sentiu uma pressão esquisita no pé esquerdo. Não sentiu nenhuma dor. Olhou para baixo, a tempo de ver a mão de Lisbeth Salander deslocar a pregadora para o seu pé direito.
Ela está embaixo do armário!
Ficou paralisado durante os segundos de que Lisbeth precisava para mirar a ponta do seu sapato e disparar mais cinco pregos de construção em seu pé.
Ele tentou se mover.
Levou preciosos segundos para entender que seus pés estavam pregados no piso recém-reformado. A mão de Lisbeth Salander deslocou a pregadora para o pé esquerdo. Parecia uma arma automática cuspindo projéteis um atrás do outro. Ela ainda teve tempo de disparar mais quatro pregos de construção antes que ele tivesse presença de espírito para reagir.
Ele começou a se inclinar para a frente com a intenção de segurar a mão de Lisbeth Salander, mas logo perdeu o equilíbrio. Conseguiu se estabilizar apoiando-se no armário, enquanto escutava a pregadora cuspindo pregos cla-blam, cla-blam, cla-blam. Ela voltara ao pé direito. Viu que ela disparava os pregos de viés, pelo calcanhar, para dentro do assoalho.
Ronald Niedermann urrou, repentinamente louco de raiva. Esticou-se uma vez mais em direção à mão de Lisbeth Salander.
De onde estava, embaixo do móvel, Lisbeth Salander viu a perna de sua calça subir, indicando que ele estava se inclinando para a frente. Largou a pregadora. Ronald Niedermann viu sua mão sumir debaixo do armário com a rapidez de um réptil antes que ele pudesse alcançá-la.
Ele avançou a mão para pegar a pregadora, mas, assim que a tocou com a ponta do dedo, Lisbeth Salander puxou-a pelo fio para baixo do móvel.
O espaço entre o chão e o móvel era de pouco mais de vinte centímetros. Ele derrubou o armário, usando toda a força de que era capaz. Lisbeth Salander fitou-o com olhos arregalados e uma expressão ofendida. Deu um giro na máquina e descarregou-a a uma distância de cinqüenta centímetros. O prego se cravou no meio da tíbia.
No instante seguinte, ela largou a pregadora e, rolando, se afastou rapidamente, tornando a se levantar fora do alcance dele. Recuou dois metros e parou.
Ronald Niedermann tentava se mover, perdeu novamente o equilíbrio, balançava para a frente e para trás, os braços se agitando em círculos amplos. Recuperou o equilíbrio e se inclinou para a frente, louco de raiva.
Dessa vez, conseguiu apanhar a pregadora. Ergueu-a e apontou-a para Lisbeth Salander. Pressionou o botão.
Mas nada aconteceu. Confuso, olhou para o aparelho. Depois ergueu os olhos para Lisbeth Salander. Com expressão vaga, ela indicou a tomada. Ele, com raiva, jogou a pregadora em cima dela. Ela se esquivou rapidamente.
Então ela reconectou o plugue e puxou a pregadora para si.
O olhar dele cruzou com o olhar inexpressivo de Lisbeth Salander e de repente ele se sentiu surpreso. Já sabia que ela havia vencido. Ela é sobrenatural. Tentou instintivamente soltar o pé do chão. Ela é um monstro. Teve força suficiente para levantá-lo alguns milímetros, até ele ser travado pela cabeça dos pregos. Estes tinham se cravado em diferentes ângulos e, para se soltar, Niedermann seria literalmente obrigado a estraçalhar os pés. Nem mesmo mobilizando sua força quase sobre-humana conseguiu soltar-se do chão. Ficou alguns segundos cambaleando como se estivesse prestes a desmaiar. Continuava pregado. Viu uma poça de sangue se formando devagar entre seus sapatos.
Lisbeth Salander sentou-se diante dele numa cadeira sem encosto, tentando captar sinais de que ele teria força para arrancar os pés do chão. Como ele não sentia dor, passar a cabeça dos pregos pelos pés era só uma questão de força. Permaneceu parada, sem mover um músculo, por dez minutos, contemplando a luta dele. O tempo todo, seus olhos se mantiveram totalmente inexpressivos.
Acabou se levantando e se posicionando atrás dele, e então apontou a pregadora para sua coluna vertebral, logo abaixo da nuca.
Lisbeth Salander refletiu muito. Aquele homem diante dela tinha importado, drogado, maltratado e vendido mulheres no atacado e no varejo. Matara pelo menos oito pessoas, inclusive um policial de Gosseberga e um membro do MC Svavelsjõ. Não fazia idéia de quantas outras mortes seu meio-irmão tinha na consciência, mas, por causa dele, ela própria fora caçada por todo o país como um cão raivoso, acusada de três homicídios cometidos por ele.
Seu dedo pesava sobre o botão.
Ele matara Dag Svensson e Mia Bergman.
Com Zalachenko, também matara a ela, Lisbeth, e a enterrara, em Gosseberga. E agora, de novo, quisera matá-la.
Motivos para se irritar não faltavam.
Não via razão alguma para deixá-lo viver. Ele a odiava com uma intensidade que ela não entendia. O que aconteceria se ela o entregasse à polícia? Um processo? Prisão perpétua? Quando poderia sair? Quando iria fugir? E agora que finalmente já não havia seu pai, por quantos anos ela ainda teria que ficar olhando atrás de si, à espera do dia que seu irmão ressurgisse? Sentiu o peso da pregadora. Podia dar um fim definitivo àquilo tudo.
Análise das conseqüências.
Mordeu o lábio inferior.
Lisbeth Salander não tinha medo nem dos seres humanos nem de coisa nenhuma. Sabia que carecia da imaginação necessária para tanto — mais uma prova de que seu cérebro era absolutamente normal.
Ronald Niedermann a odiava e ela retribuía com um ódio também desmedido. Ele era daqueles homens do tipo Magge Lundin, Martin Vanger Alexander Zalachenko e dezenas de outros canalhas que, a seu ver não tinham por que permanecer entre os vivos. Se pudesse juntar todos numa ilha deserta e jogar uma bomba nuclear em cima deles, ficaria satisfeita.
Mas um assassinato? Será que valia a pena? O que aconteceria com ela se o matasse? Quais eram as chances de ela não ser pega? O que ela estaria pronta a sacrificar em troca da satisfação de acionar a pregadora uma última vez?
Ela poderia alegar legítima defesa... não muito, com os pés dele pregados no chão.
Lembrou-se de repente de Harriet Vanger, que também havia sido assediada pelo pai e pelo irmão. Lembrou-se da discussão que tivera com Mikael Blomkvist, quando ela condenara Harriet Vanger com palavras duras. Era culpa de Harriet Vanger se seu irmão Martin continuara a matar por anos a fio.
— O que você faria? — Mikael tinha perguntado.
— Eu acabaria com aquele traste — ela respondera com uma convicção vinda do mais fundo da sua alma gelada.
E não é que agora ali estava ela exatamente na mesma situação de Harriet Vanger? Quantas mulheres Ronald Niedermann ainda não iria matar se ela o deixasse livre? Ela era maior de idade e socialmente responsável por seus atos. Quantos anos de sua vida estaria pronta a sacrificar? Quantos anos Harriet Vanger aceitara sacrificar?