O mais preocupante era o pequeno envelope de plástico em cima da mesa, onde ele pusera a lista de números da agenda telefônica de Harriet e uma cópia das citações bíblicas às quais eles se referiam. A pessoa que vasculhara a saleta agora sabia que ele havia decifrado o código da Bíblia.
Quem?
Henrik Vanger estava no hospital. Ele não suspeitava de Anna, a governanta. Dirch Frode? Mas Mikael já havia lhe contado todos os detalhes... Cecilia Vanger adiara a viagem à Flórida e voltara de Londres com a irmã. Ele a vira na noite anterior, atravessando a ponte de carro. Martin Vanger? Harald Vanger? Birger Vanger regressara para participar de uma reunião de família, à qual Mikael não fora convidado, no dia seguinte ao infarto de Henrik. Alexander Vanger? Isabella Vanger? Ela era tudo menos simpática.
Com quem Frode havia falado? Deixara escapar alguma coisa? Quantos, dos mais próximos, haviam percebido que Mikael descobrira algo novo nas investigações?
Passava de oito da noite. Ele telefonou para um serralheiro em Hedestad e pediu uma nova fechadura. O serralheiro explicou que só poderia ir na manhã seguinte. Mikael prometeu pagar o dobro se ele fosse imediatamente, e ele concordou em passar às dez e meia para instalar uma nova fechadura na casa.
Enquanto esperava o serralheiro, Mikael foi até a casa de Dirch Frode, por volta das oito e meia. A mulher de Frode apontou para o jardim atrás da casa e lhe propôs uma cerveja gelada, que Mikael aceitou com prazer. Ele pediu a Frode notícias de Henrik.
— Foi operado. Tem arteriosclerose nas coronárias. O médico disse que seu estado continua crítico, mas que ainda há esperanças.
Ficaram um instante em silêncio, bebendo cerveja.
— Suponho que não conseguiu falar com ele.
— Não, não está em condições de falar. E como foi lá em Estocolmo?
— Lisbeth Salander aceitou. Eu trouxe o contrato de Dragan Armanskij. Precisa assiná-lo e enviá-lo de volta.
Dirch Frode leu o documento.
— Ela não cobra barato — constatou.
— Henrik pode pagar.
Frode foi buscar uma caneta e assinou.
— Ainda posso assinar este contrato por Henrik enquanto ele estiver vivo. Pode deixá-lo na caixa de correspondência do Konsum quando voltar para casa?
* * *
A meia-noite, Mikael já estava na cama, porém não conseguia dormir. Até então, sua temporada na ilha de Hedeby limitara-se a desencavar extravagâncias históricas. Mas quem sabe o passado não estivesse mais próximo do presente do que ele imaginava, se alguém suficientemente interessado no que ele fazia foi capaz de se introduzir na sua saleta de trabalho?
De repente lhe ocorreu que outras pessoas fora da ilha também podiam estar interessadas nas atividades dele. A súbita entrada de Henrik Vanger no conselho administrativo da Millennium não devia ter passado despercebida a Hans-Erik Wennerström. Ou esse tipo de pensamento indicava que ele estava ficando paranóico?
Mikael levantou-se, postou-se completamente nu diante da janela da cozinha e olhou pensativo para a igreja do outro lado da ponte. Acendeu um cigarro.
Não conseguia entender Lisbeth Salander. Ela tinha um comportamento estranho, fazia longas pausas no meio da conversa. Seu apartamento era um caos, com montanhas de jornais no vestíbulo e uma cozinha que não passava por uma limpeza havia bem um ano. Roupas espalhadas pelo chão, com certeza ele a tinha encontrado depois de uma noite de farra. No pescoço havia vestígios de chupadas, reveladoras de grande atividade noturna. Tinha várias tatuagens pelo corpo, piercings no rosto e provavelmente também em lugares que ele não vira. Ou seja, uma criatura especial.
Por outro lado, Armanskij garantira que ela era indiscutivelmente a melhor investigadora de sua empresa, e a investigação que fizera sobre ele indicava com certeza que ela ia fundo nas coisas. Uma garota estranha.
Lisbeth Salander estava diante do seu Powerbook refletindo sobre como reagira a Mikael Blomkvist. Em toda a sua vida adulta, jamais deixara entrar em sua casa alguém que não tivesse sido expressamente convidado, e podia-se contar tais pessoas nos dedos de uma mão. Sem a menor cerimônia, Mikael se intrometera em sua vida e ela não reagira senão com uns protestos frouxos.
E não foi tudo — ele havia mexido com ela, zombado dela.
De hábito, esse tipo de comportamento a teria levado a mentalmente engatilhar uma arma. No entanto, não sentiu a menor ameaça, nenhuma hostilidade vinda de Mikael Blomkvist. Ele tinha todos os motivos para estar zangado — e até mesmo para processá-la depois de ter descoberto que ela invadira seu computador. Mas não, levou isso também na brincadeira.
Foi a parte mais delicada da conversa que tiveram. Como se Mikael propositalmente não quisesse tocar no assunto. Por fim, ela mesma não conseguiu evitar.
— Você disse que sabe o que eu fiz.
— Você invadiu o meu computador, é uma hacker.
— Como sabe disso? — Lisbeth tinha a certeza de que não havia deixado vestígios e de que não seria descoberta, a menos que alguém muito experiente em segurança estivesse escaneando o disco rígido no momento em que ela o invadiu.
— Você cometeu um erro. — Ele explicou que ela reproduzira um texto que só existia no computador dele e em nenhum outro lugar.
Lisbeth Salander ficou em silêncio por um bom tempo. Por fim, fixou nele uns olhos inexpressivos.
— Como conseguiu? — ele perguntou.
— Segredo. O que pretende fazer? Mikael encolheu os ombros.
— O que eu posso fazer? No máximo, deveria levar um papo com você sobre ética e moral, e sobre os perigos de bisbilhotar a vida alheia.
— Que é exatamente o que você faz como jornalista. Ele concordou com a cabeça.
— Sem dúvida. É justamente por isso que nós, jornalistas, temos um comitê de ética nos vigiando nas questões morais. Quando escrevo um texto sobre um corrupto do mundo financeiro, deixo de lado, por exemplo, sua vida sexual. Não escrevo que uma estelionatária é lésbica ou que sonha trepar com seu cachorro, ou coisas do gênero, ainda que seja verdade. Mesmo os corruptos têm direito a uma vida privada, e é muito fácil prejudicar alguém atacando sua maneira de viver. Entende o que quero dizer?
— Sim.
— Portanto, você atentou contra a minha integridade. Henrik Vanger não precisava saber com quem eu faço amor. É problema meu.
Um sorriso acanhado despontou nos lábios de Lisbeth Salander.
— Acha então que eu não devia ter falado disso?
— No que me diz respeito, não faz muito diferença. Metade da cidade sabe da minha ligação com Erika. Estou falando é do princípio.
— Talvez você ache divertido saber que eu também tenho princípios que correspondem ao do seu comitê de ética. É o que chamo de Princípio Salander. Na minha opinião, um corrupto sempre será um corrupto e, se posso prejudicá-lo desencavando sujeiras a seu respeito, ele tem o que merece. Não faço senão dar-lhe o troco.
— Certo — disse Mikael Blomkvist sorrindo. — Meu raciocínio não é inteiramente diferente do seu, mas...
— A verdade é que ao fazer uma investigação levo em conta também o que a pessoa me inspira. Não fico neutra. Se julgo que se trata de uma pessoa boa, posso ser discreta no meu relatório.
— É mesmo?
— No seu caso, fui discreta. Poderia ter escrito um livro sobre a sua vida sexual. Poderia ter contado a Frode que Erika Berger tem um passado no clube Xtreme e que flertava com o BDSM nos anos 1980, o que inevitavelmente teria criado algumas associações de idéias sobre a vida sexual de vocês.
Mikael Blomkvist encarou o olhar de Lisbeth Salander. Depois de um momento, olhou pela janela e deu uma gargalhada.
— Realmente nada te escapa. Por que não pôs isso no relatório?