Ela se calou.
— Talvez seja um hobby para Henrik, mas o fato é que descobri novos elementos que não tinham sido descobertos em trinta e cinco anos. Há questões nessa investigação que ficaram sem resposta, e estou trabalhando de acordo com as instruções de Henrik.
— Se Henrik morrer, esta droga de investigação vai acabar em seguida e você será o primeiro a cair fora — disse Cecilia, afastando-se e cruzando a porta.
* * *
Tudo estava fechado, Hedestad praticamente deserta. A população parecia ter ido ao campo para as festividades de São João. Mikael encontrou por fim o terraço do Grande Hotel e ali pediu um café e um sanduíche enquanto lia os jornais da tarde. Nada de importante acontecera no mundo.
Deixou os jornais e refletiu sobre Cecilia Vanger. Não havia contado nem a Henrik nem a Dirch Frode que suspeitava que ela tinha aberto a janela do quarto de Harriet. Não queria transformá-la em suspeita e a última coisa que desejava era prejudicá-la. Mas cedo ou tarde seria preciso tocar nessa questão.
Permaneceu no terraço por uma hora até decidir deixar de lado aquele problema e dedicar o Dia de São João a outra coisa que não à família Vanger. Seu celular permanecia silencioso. Erika viajara no fim de semana e se divertia em algum lugar com o marido, e ele não tinha com quem falar.
Regressou à ilha por volta das quatro da tarde e tomou outra decisão — parar de fumar. Ele se exercitava com regularidade desde a época do serviço militar, ginástica e jogging ao longo da Söder Mälarstrand, mas parara completamente quando os problemas com Hans-Erik Wennerström começaram. Em Rullaker tentou desenferrujar o corpo, sobretudo como terapia, mas desde que deixara a prisão não fizera muitos progressos. Era hora de recomeçar. Com determinação, vestiu um abrigo e se pôs a correr em marcha lenta pelo caminho que conduzia à cabana de Gottfried, pegou a trilha para a Fortificação e empregou um ritmo mais forte fora da pista. Não praticava corrida de percurso desde o serviço militar, mas sempre preferira correr no bosque do que nas pistas de treinamento. Passou pela fazenda de Östergarden para voltar ao povoado. Sentia-se exausto quando completou, bufando, os últimos metros até a casa dos convidados.
Às seis da tarde tomou um banho. Adepto, mesmo contra a vontade, do tradicional jantar de São João, pôs algumas batatas para cozinhar, preparou o arenque marinado com cebolinha e ovos duros e instalou-se numa mesa frágil, fora de casa, no lado que dava para a ponte. Serviu-se de aquavita e brindou sozinho. Depois abriu um romance policial intitulado O canto das sereias, de Vai McDermid.
Por volta das sete da noite, Dirch Frode passou para vê-lo e instalou-se pesadamente numa cadeira do jardim diante dele. Mikael ofereceu-lhe uma dose de aquavita.
— Você causou muitos ressentimentos hoje — disse Frode.
— Eu percebi.
— Birger Vanger é um fanfarrão.
— Eu sei.
— Mas Cecilia Vanger não é, e está furiosa com você. Mikael assentiu com a cabeça.
— Ela me falou que você precisa parar de remexer nos assuntos da família.
— Entendo. E o que você respondeu?
Dirch Frode olhou seu copo de aquavita e o esvaziou num trago.
— Respondi que Henrik deu instruções muito claras sobre o que deseja que você faça. Enquanto ele não modificar essas instruções, você segue o contrato que fizemos. Espero que faça o possível para cumprir sua parte no contrato.
Mikael concordou com a cabeça. Olhou o céu, onde nuvens de chuva se acumulavam.
— Há uma tempestade no ar — disse Frode. — Se os ventos começarem a soprar muito fortes, estarei aqui para ajudá-lo.
— Obrigado.
Ficaram um instante em silêncio.
— Pode me servir mais um trago? — pediu Frode.
Alguns minutos depois de Dirch Frode ter voltado para casa, Martin Vanger estacionou o carro em frente à casa dos convidados. Desceu e foi cumprimentar Mikael, que lhe desejou boa Festa de São João e lhe ofereceu uma bebida.
— Não, obrigado. Vim à ilha só para trocar de roupa. Vou voltar agora à cidade para passar a noite com Eva.
Mikael esperou.
— Falei com Cecilia. Ela está um pouco perturbada, é muito apegada a Henrik. Espero que a perdoe se ela disse coisas... desagradáveis.
— Gosto muito de Cecilia — respondeu Mikael.
— Eu sei. Mas ela tem lá seus humores. Saiba apenas que Cecilia é totalmente contra você remexer no passado.
Mikael suspirou. Todo mundo em Hedestad parecia saber por que Henrik o contratara.
— E você?
Martin afastou as mãos num gesto de perplexidade.
— Há décadas Henrik está obcecado com essa história da Harriet. Não sei o que dizer... Harriet era minha irmã, mas de certo modo já está distante de mim. Dirch Frode me disse que você tem um contrato que somente Henrik pode romper. Considerando seu atual estado de saúde, creio que isso cause mais mal do que bem.
— E você, quer que eu continue?
— Descobriu alguma coisa?
— Desculpe, Martin, mas eu quebraria o contrato se lhe contasse alguma coisa sem a autorização de Henrik.
— Entendo. — Ele sorriu de repente. — Henrik gosta muito de conspirações, tem um monte de teorias a respeito, mas eu não gostaria que você lhe desse falsas esperanças.
— Fique tranquilo. A única coisa que apresento a ele são fatos que posso comprovar através de documentos.
— Bem... Aliás, por falar nisso, precisamos pensar também no outro contrato. Como Henrik está doente e impossibilitado de cumprir suas obrigações no conselho administrativo da Millennium, me ofereço para ficar no seu lugar.
Mikael esperou.
— Precisamos convocar uma reunião para avaliar a situação.
— É uma boa idéia, mas, pelo que entendi, a próxima reunião já foi marcada para agosto.
— Sim, mas talvez possamos antecipá-la. Mikael sorriu polidamente.
— Sem dúvida. Mas está falando com a pessoa errada. Por enquanto não faço parte do conselho administrativo da Millennium. Deixei a revista em dezembro e nada posso dizer sobre as decisões tomadas pelo conselho. Sugiro que converse com Erika Berger sobre isso.
Martin Vanger não esperava essa resposta. Refletiu um momento antes de se levantar.
— Tem razão, claro. Vou telefonar para ela. — Deu um tapinha no ombro de Mikael para se despedir e foi se encaminhando para o carro.
Mikael olhou para ele pensativamente. Nada de preciso fora dito, mas pairava no ar uma clara ameaça. Martin Vanger havia colocado a Millennium na balança. Um instante depois, Mikael serviu-se de uma nova dose de aquavita e voltou à sua leitura de Vai McDermid.
Por volta das nove da noite, o gato ruivo chegou e se esfregou em suas pernas. Ele o acariciou atrás das orelhas.
— É isso aí, meu velho. Vamos nos aborrecer juntos na noite de São João — disse.
Quando caíram as primeiras gotas de chuva, entrou para se deitar. O gato preferiu ficar lá fora.
Lisbeth Salander passou o Dia de São João fazendo uma boa revisão na sua Kawasaki. Uma moto de 125 cilindradas não era a máquina ideal, mas ela sabia conduzi-la e a reformara, peça por peça, inclusive ajustando-a para poder correr um pouco acima da velocidade autorizada.
À tarde, pôs o capacete e a jaqueta de couro e foi até a casa de saúde de Äppelviken, onde passou algumas horas com sua mãe no jardim. Saiu de lá com uma ponta de preocupação e com maus pressentimentos. A mãe parecia mais ausente do que nunca. Durante as três horas em que ficaram juntas, só trocaram umas poucas palavras, e sua mãe nem parecia saber com quem falava.
Mikael passou dias tentando identificar o carro com placa AC. Embora tenha ficado um pouco perdido no início, acabou encontrando um mecânico aposentado em Hedestad que identificou o veículo como um Ford Anglia, modelo aparentemente comum, do qual, porém, Mikael nunca tinha ouvido falar. Depois entrou em contato com um funcionário do Departamento de Trânsito, para ver se era possível conseguir uma relação de todos os Ford Anglia de 1966 com placa iniciada por AC3 alguma coisa. Estava tentando seguir outras pistas, quando veio a resposta de que um exame de registros até era possível, só que demoraria algum tempo por ser algo muito diferente do que se podia considerar como informação de interesse público.