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— Meu Deus! — disse.

— Não encontrei nenhuma citação bíblica que encaixe, mas há várias passagens que falam de imolação e de sacrifício pelo pecado, e em alguns trechos se preconiza que o animal de sacrifício, geralmente um touro, seja decepado de modo que a cabeça se separe da gordura. A utilização do fogo lembra também o primeiro assassinato, o de Rebecka aqui em Hedestad.

Quando os mosquitos começaram sua dança noturna, Mikael e Lisbeth deixaram a mesa de jardim e se instalaram na cozinha para continuar a conversa.

— O fato de você não ter encontrado uma citação bíblica exata não quer dizer grande coisa. Não se trata de citações, mas de uma paródia grotesca do que diz a Bíblia; são mais associações com versículos esparsos.

— Eu sei. Um exemplo dessa falta de lógica é a citação de que os dois devem ser exterminados se um homem faz amor com uma mulher menstruada. Se interpretarmos literalmente, o assassino deveria ter se suicidado.

— E tudo isso nos leva a quê? — perguntou Mikael.

— Ou a sua Harriet tinha o estranho hobby de colecionar citações bíblicas para associá-las a vítimas de crimes dos quais ouviu falar, ou ela sabia da existência de uma ligação entre os crimes.

— Entre 1949 e 1966, talvez antes e depois também, teria existido um louco furioso e sádico que andou com uma Bíblia debaixo do braço matando mulheres durante dezessete anos sem que ninguém tivesse feito uma ligação entre os crimes. Parece inacreditável.

Lisbeth Salander afastou a cadeira e foi buscar café no fogão. Acendeu um cigarro e soprou a fumaça ao redor. Mikael praguejou por dentro e lhe pediu mais um cigarro.

— Não, não é nada inacreditável. Primeiro — disse ela erguendo o polegar —, há dezenas e dezenas de assassinatos de mulheres não solucionados na Suécia do século XX. Certa vez ouvi Persson, o professor de criminologia, dizer na tevê que os assassinos seriais são muito raros na Suécia, embora alguns jamais tenham sido identificados.

Mikael assentiu com a cabeça. Ela levantou um segundo dedo.

— Esses crimes foram cometidos num período muito longo e em diferentes regiões do país. Dois ocorreram sucessivamente em 1960, mas em circunstâncias relativamente diferentes — uma camponesa em Karlstad e uma moça de vinte e dois anos apaixonada por equitação em Estocolmo.

Três dedos.

— Não há um esquema claro, marcante. Os crimes foram cometidos de formas diferentes e não há uma verdadeira assinatura, apesar de alguns elementos retornarem toda vez. Animais. Fogo. Violências sexuais graves. E, como você disse, uma paródia de conhecimentos bíblicos. Mas, pelo que se sabe, nenhum dos investigadores da polícia usou a Bíblia para interpretar os crimes.

Mikael concordou com a cabeça e a examinou discretamente. Com seu corpo frágil, sua regata preta, as tatuagens e os piercings no rosto, Lisbeth Salander era de fato uma figura estranha na casa dos convidados em Hedeby. Quando ele tentara ser sociável durante o jantar, ela permaneceu taciturna e mal respondeu. Mas trabalhando era uma profissional dos pés à cabeça. Seu apartamento em Estocolmo parecia uma ruína após um bombardeio, porém Mikael foi obrigado a reconhecer que Lisbeth Salander tinha a cabeça muito bem organizada. Que estranho!

— É difícil ver a relação entre uma prostituta de Uddevalla assassinada atrás de um container num terreno baldio industrial e a mulher do pastor de Ronneby estrangulada e vítima de um incêndio criminoso. A menos que encontremos a chave que Harriet nos deixou, é claro.

— O que nos leva à próxima questão — disse Lisbeth.

— Como Harriet foi se envolver com toda essa merda? Ela, uma menina de dezesseis anos que vivia num meio bastante protegido.

— Só há uma resposta — disse ela. Mikael assentiu com a cabeça outra vez.

— Existe, necessariamente, uma ligação com a família Vanger.

Por volta das onze da noite, eles haviam repassado a série de crimes e discutido relações e detalhes curiosos, a ponto de os pensamentos girarem sem parar na cabeça de Mikael. Ele esfregou os olhos, se espreguiçou e perguntou se Lisbeth não tinha vontade de dar uma caminhada. Ela pareceu achar esse tipo de exercício uma perda de tempo, mas, depois de refletir um instante, concordou. Mikael sugeriu que ela vestisse uma calça comprida por causa dos mosquitos.

Deram uma volta pelo porto de recreio, passaram junto à ponte e seguiram em direção ao promontório onde Martin Vanger morava. Mikael apontou as casas e contou quem eram seus moradores. Teve dificuldade de falar sobre Cecilia Vanger quando mostrou sua casa. Lisbeth olhou para ele discretamente.

Passaram em frente ao luxuoso iate de Martin Vanger e chegaram ao promontório, onde se sentaram numa pedra e dividiram um cigarro.

— Há um outro tipo de ligação entre as vítimas — disse Mikael de repente. — Talvez já tenha lhe ocorrido isso.

— O quê?

— Os prenomes.

Lisbeth Salander refletiu por um instante e depois balançou negativamente a cabeça.

— Todas têm prenomes bíblicos.

— Não, não é verdade — respondeu Lisbeth vivamente. — Não há nem Liv nem Lena na Bíblia.

— Pois eu digo que sim — replicou Mikael. — Liv significa "viver", que é o sentido bíblico do prenome Eva. E, pense um pouco, Lisbeth: Lena é uma redução de quê?

Lisbeth Salander contraiu os olhos com força, irritada consigo mesma. Mikael raciocinara mais rápido que ela, e ela não gostava disso.

— De Magdalena, assim como Magda. Ou seja, Madalena — ela disse.

— A pecadora, a primeira mulher, a Virgem Maria... eis todas elas reunidas. É uma história bem maluca, capaz de fundir a cabeça de qualquer psicólogo. Mas, na verdade, ainda estou pensando em outra coisa sobre os prenomes.

Lisbeth aguardou pacientemente.

— São também prenomes femininos judaicos tradicionais. A família Vanger teve um bom contingente de doidos anti-semitas, nazistas e teóricos da conspiração. Harald Vanger, no topo da lista, tem mais de noventa anos e estava no auge de sua forma nos anos 1960. A única vez em que o encontrei, disse com desprezo que sua filha era uma puta. Ele claramente tem problemas com as mulheres.

De volta à casa, eles prepararam sanduíches e esquentaram o café. Mikael lançou um olhar às quinhentas páginas que a investigadora favorita de Dragan Armanskij havia produzido.

— Fez um trabalho de pesquisa fantástico num tempo recorde. Obrigado. E obrigado também pela gentileza de vir até aqui me trazer o relatório.

— E o que faremos agora? — perguntou Lisbeth.

— Falarei com Dirch Frode amanhã de manhã para que paguem você.

— Não foi isso que eu quis dizer. Mikael olhou para ela.

— Bem... o trabalho de pesquisa para o qual eu a contratei terminou — ele disse com prudência.

— Ainda não acabei de resolver essa história.

Mikael inclinou-se para trás no banco da cozinha e sondou os olhos dela. Não conseguiu detectar absolutamente nada. Durante seis meses havia trabalhado sozinho no desaparecimento de Harriet e de repente outra pessoa — uma investigadora habilidosa — captava todas as implicações do caso. Ele tomou uma súbita decisão.

— Entendo. Essa história também está mexendo com os meus nervos. Falarei com Dirch Frode amanhã. Contrataremos você por mais uma semana ou duas como... humm... assistente de pesquisa. Não sei se ele está disposto a pagar o mesmo que paga a Armanskij, mas daremos um jeito de conseguir uma remuneração satisfatória.