Lisbeth agradeceu com um breve sorriso. Ela não tinha a menor vontade de ficar inativa e teria aceitado de bom grado o trabalho de graça.
— Vou dormir — ela anunciou. E, sem dizer mais nada, foi para o quarto e fechou a porta.
Dez minutos depois, abriu a porta e pôs a cabeça para fora.
— Acho que você está enganado. Ele não é um assassino serial, um doente que leu a Bíblia demais. É simplesmente um canalha ordinário que odeia as mulheres.
21. QUINTA-FEIRA 3 DE JULHO — QUINTA-FEIRA 10 DE JULHO
Lisbeth Salander acordou antes de Mikael, às seis da manhã. Pôs a água do café para esquentar e tomou um banho. Quando Mikael acordou por volta das sete e meia, encontrou-a lendo seu resumo do caso Harriet Vanger no notebook. Foi até a cozinha, com uma toalha de banho em volta da cintura, e esfregou os olhos para espantar o sono.
— O café está pronto — disse Lisbeth. Mikael olhou por cima do ombro dela.
— Esse documento estava protegido por uma senha de acesso — disse. Ela virou a cabeça e olhou para ele.
— Em trinta segundos pode-se baixar um programa na internet que abre as senhas do Word — ela disse.
— Nós dois precisamos ter uma conversinha sobre o que lhe pertence e o que me pertence — disse Mikael, e foi tomar seu banho.
Quando voltou, Lisbeth já havia fechado e recolocado o computador de Mikael na saleta de trabalho, e trabalhava no seu próprio Powerbook. Ele podia jurar que ela já havia transferido todo o conteúdo do seu computador para o dela.
Lisbeth Salander era uma junkie da informática com uma concepção muito liberal a respeito de moral e ética.
* * *
Mikael tinha acabado de se sentar à mesa para tomar o café-da-manhã, quando bateram à porta. Ao abrir, deu com um Martin Vanger tão crispado que, por um instante, acreditou que ele vinha anunciar a morte de Henrik.
— Não, o estado de Henrik continua o mesmo. Venho por outro motivo. Será que posso entrar um momento?
Mikael o fez entrar e o apresentou à sua "colaboradora" Lisbeth Salander. Ela o cumprimentou com um breve aceno de cabeça antes de voltar ao computador. Martin Vanger respondeu com uma saudação automática, mas dava a impressão de estar tão distraído que nem pareceu notá-la. Mikael serviu-lhe uma xícara de café e o convidou a se sentar.
— O que aconteceu?
— Você é assinante do Hedestads-Kuriren?
— Não. Leio o jornal de vez em quando no Café Susanne.
— Então não leu a edição de hoje?
— Pelo jeito, acho que eu deveria ter lido.
Martin Vanger pôs o Hedestads-Kuriren em cima da mesa, na frente de Mikael. Havia duas colunas dedicadas a ele na primeira página, com uma continuação na página 4. Ele leu a manchete.
JORNALISTA CONDENADO POR DIFAMAÇÃO SE ESCONDE ENTRE NÓS
O texto era ilustrado por uma foto de Mikael saindo de casa, tirada da igreja, do outro lado da ponte, com teleobjetiva.
O repórter Conny Torsson traçava um perfil grosseiro e devastador de Mikael. O artigo recapitulava o caso Wennerström, sublinhava que Mikael deixara a Millennium com o rabo entre as pernas e que acabava de amargar uma pena de prisão. O texto terminava informando, segundo a fórmula-padrão, que Mikael se recusara a conceder uma entrevista ao Hedestads-Kuriren. A idéia da matéria era fazer o habitante de Hedestad acreditar que um vagabundo da capital, um indivíduo perigoso, se encontrava nas imediações. Nenhuma das afirmações era abertamente caluniosa, mas todas procuravam jogar uma luz suspeita sobre Mikael; a foto e o texto adotavam a linha "descrição de terroristas políticos". A Millennium era apresentada como uma "revista de agitadores" pouco digna de crédito, e o livro de Mikael sobre jornalismo econômico como um amontoado de afirmações destinadas a denegrir jornalistas respeitados.
— Mikael... não tenho palavras para dizer o que senti quando li esse artigo. É ignóbil.
— É cobra mandada — respondeu Mikael calmamente. Ele perscrutou Martin Vanger com o olhar.
— Espero que não pense que eu tenho algo a ver com isso. Mal consegui engolir meu café hoje de manhã, ao ler o jornal.
— Quem teria sido?
— Dei alguns telefonemas agora há pouco. Conny Torsson está cobrindo férias de verão. Mas ele fez esse trabalho a pedido de Birger.
— Não sabia que Birger tinha influência na redação. Pensei que fosse apenas conselheiro municipal e político.
— Formalmente não tem influência alguma. Mas o redator-chefe do Kuriren é Gunnar Karlman, filho de Ingrid Vanger, do ramo Johan Vanger. Birger e Gunnar são amigos íntimos há muitos anos.
— Entendo.
— Torsson será despedido imediatamente.
— Que idade ele tem?
— Não sei. Para dizer a verdade, nunca o vi.
— Não o demita. Quando ele me telefonou, parecia bastante jovem e um repórter pouco experiente.
— Mas isso não pode ficar assim.
— Se quer saber minha opinião, acho um pouco absurdo o redator-chefe de um jornal que pertence à família Vanger atacar outro periódico que tem Henrik Vanger como sócio e de cujo conselho administrativo você participa. O redator-chefe Karlman está atacando Henrik e você.
Martin Vanger pesou as palavras de Mikael e assentiu lentamente com a cabeça.
— Entendo o que quer dizer. Eu deveria apurar melhor as responsabilidades. Karlman tem participações no grupo e sempre tentou me atacar pelas costas, mas isso está me parecendo mais uma vingança do Birger por você ter batido boca com ele no corredor do hospital. Para ele, você é uma pedra no sapato.
— Sim, e é por isso que acho Torsson o mais inocente de todos. É muito raro um jovem jornalista substituto dizer não quando o redator-chefe lhe ordena que escreva desse ou daquele modo.
— Posso exigir que lhe apresentem desculpas públicas nas páginas de amanhã.
— Não faça isso. O único resultado seria uma luta interminável, o que só pioraria a situação.
— Está querendo me dizer que não devo fazer nada?
— Sim, será melhor. Karlman inventará histórias, e você corre o risco de ser classificado como um proprietário com vontade de influenciar de maneira ilícita a opinião do público.
— Desculpe, Mikael, mas não concordo com você. Também tenho o direito de emitir minha opinião. Acho esse artigo imundo e tenho a intenção de deixar bem claro o que penso. Afinal, sou o suplente de Henrik na direção da Millennium e não posso me calar diante dessas insinuações.
— Tudo bem.
— Vou exigir direito de resposta. E, se eu fizer Karlman parecer um idiota, a culpa é dele.
— Certo, aja de acordo com as suas convicções.
— Para mim também é importante que você saiba que eu nada tive a ver com esse ataque infame.
— Acredito em você — disse Mikael.
— Além do mais, não vou discutir o assunto agora, mas isso remete à nossa conversa de antes. E importante que você volte à redação da Millennium para que possamos montar uma frente unida. Enquanto estiver ausente, os boatos vão continuar. Acredito na Millennium e estou convencido de que podemos vencer essa batalha juntos.
— Entendo seu ponto de vista, mas agora é a minha vez de discordar. Não posso romper meu contrato com Henrik e na verdade também não desejo rompê-lo. Gosto dele, você sabe. E essa história da Harriet...
— Sim?
—— Sei que é uma história penosa para você e sei que Henrik está obcecado há anos por ela.
— Cá entre nós, gosto de Henrik e ele é o meu mentor, mas, no que diz respeito a Harriet, essa obsessão virou uma ocupação de aposentado.