Mikael contou que conversara com Otto Falk e repetiu as respostas dele, acrescentando que não entendera seu significado. Margareta Strandh escutou e pediu que Mikael repetisse palavra por palavra o que Falk dissera. Ela refletiu por um instante.
— Comecei a trabalhar aqui em Hedeby há apenas três anos e nunca vi o pastor Falk. Ele já havia se aposentado vários anos antes, mas soube que era bastante tradicionalista. O que ele disse significa mais ou menos que devemos nos ater unicamente aos escritos — sola scriptura — e que eles são sufficientia scripturae. Para os crentes tradicionalistas, essa última expressão significa o reconhecimento da Sagrada Escritura como única fonte de autoridade. Sola fide significa "a única fé", ou "a fé pura".
— Entendo.
— Tudo isso pertence, por assim dizer, aos dogmas fundadores. É a base da Igreja e nada tem de extraordinário. Ele disse simplesmente: Leia a Bíblia — ela oferece o conhecimento suficiente e garante a fé pura.
Mikael sentiu-se um pouco desconfortável.
— Mas permita que eu lhe pergunte: em que contexto ocorreu essa conversa?
— Fiz perguntas sobre alguém que ele conheceu há muito tempo e sobre quem estou escrevendo.
— Alguém numa busca religiosa?
— Algo do gênero.
— Certo. Acho que percebo a relação. O pastor Falk disse duas outras coisas — que José os exclui formalmente e que eles nunca foram incluídos no cânone. Será que você não entendeu mal e ele disse Josefo em vez de José? Na verdade, é o mesmo nome.
— É possível — disse Mikael. — Gravei a conversa, se quiser escutar.
— Não, acho que não é necessário. As duas frases estabelecem de maneira clara o que ele quis dizer. Josefo era um historiador judeu e a frase eles nunca foram incluídos no cânone provavelmente indica que nunca fizeram parte do cânone hebraico.
— E o que isso quer dizer?
Ela riu.
— O pastor Falk afirmou que essa pessoa tinha uma atração por fontes esotéricas, mais precisamente pelos apócrifos. A palavra apokryphos significa "oculto", e os apócrifos são livros ocultos que alguns contestam fortemente e que outros consideram como parte do Antigo Testamento. São os livros de Tobias, Judite, Ester, Baruc, Sirac, os Macabeus e mais outros dois ou três.
— Desculpe a minha ignorância. Já ouvi falar dos apócrifos, mas nunca os li. O que eles têm de especial?
— Na verdade, nada de especial, a não ser que foram escritos um pouco mais tarde que o restante do Antigo Testamento. Por isso os apócrifos foram riscados da Bíblia hebraica. Não que os doutores da lei desconfiassem de seu conteúdo, mas simplesmente porque foram escritos depois da época em que a obra da revelação de Deus estava terminada. Em contrapartida, os apócrifos figuram na velha tradução grega da Bíblia. Portanto, não são controvertidos na Igreja católica.
— Entendo.
— Contudo, são particularmente controvertidos na Igreja protestante. Na época da Reforma, os teólogos buscavam se aproximar ao máximo da velha Bíblia hebraica. Martinho Lutero retirou os apócrifos da Bíblia da Reforma, e mais tarde Calvino afirmou que os apócrifos não deviam em hipótese alguma servir de base para as confissões de fé, por conterem afirmações que contradiziam a claritas Scripturae — a clareza das Escrituras.
— Ou seja, livros censurados.
— Exatamente. Os apócrifos afirmam, por exemplo, que se pode praticar a magia, que a mentira é autorizada em alguns casos e outras coisas semelhantes, que evidentemente indignam os exegetas dogmáticos das Escrituras.
— E não é nada impossível, se alguém sente uma atração pela religião, que os apócrifos apareçam na sua lista de leitura, para a grande irritação de homens como o pastor Falk.
— Isso mesmo. È quase inevitável o confronto com os apócrifos se nos interessamos pela Bíblia ou pelo catolicismo, e é muito provável que alguém interessado pelo esoterismo, de maneira geral, os leia.
— Por acaso teria um exemplar dos apócrifos? Ela riu mais uma vez. Um riso aberto, amistoso.
— Claro. Os apócrifos foram editados pela comissão bíblica nos anos 1980 por ocasião de um estudo nacional.
Dragan Armanskij perguntou-se o que poderia estar havendo quando Lisbeth Salander pediu uma conversa particular. Ele fechou a porta e fez sinal para ela se sentar na poltrona dos visitantes. Ela contou que o trabalho para Mikael Blomkvist estava terminado — Dirch Frode pagaria antes do fim do mês —, mas que decidira prosseguir a investigação. Mikael lhe oferecera um salário mensal consideravelmente inferior.
— Em suma, é uma questão pessoal — disse Lisbeth Salander. — Até agora nunca aceitei trabalho a não ser de você, segundo nosso acordo. O que quero saber é o que será da nossa relação se eu começar a pegar trabalhos por conta própria.
Dragan Armanskij afastou as mãos.
— Você é seu patrão, pode pegar os trabalhos que quiser e cobrar como quiser. Fico contente de que tenha fontes próprias de dinheiro. Mas seria desleal atrair para você clientes que conheceu por nosso intermédio.
— Não tenho essa intenção. Fiz o trabalho conforme o contrato que estabelecemos com Blomkvist. Esse trabalho está terminado. Agora eu é que quero continuar no caso. Faria até mesmo de graça.
— Nunca faça nada de graça.
— Entenda, estou querendo dizer que quero saber aonde vai dar essa história. Convenci Mikael Blomkvist a pedir a Dirch Frode um contrato suplementar como assistente de pesquisa.
Ela estendeu o contrato a Armanskij, que o percorreu com os olhos.
— Esse salário equivale quase a trabalhar por nada. Lisbeth, você tem talento. Sabe que pode ganhar bem mais trabalhando comigo, se aceitasse um regime de tempo integral.
— Não quero trabalhar em tempo integral. Mas continuarei fiel a você, Dragan. Você tem sido correto comigo desde que comecei aqui. Quero saber se para você está bem esse tipo de contrato, porque não quero que haja problemas entre nós.
— Entendo. — Ele refletiu um instante. — Para mim está certo. Obrigado por me procurar. Se outras situações como essa surgirem no futuro, peço que me avise, para não haver mal-entendidos.
Lisbeth Salander ficou em silêncio por um minuto ou dois, calculando se havia algo a acrescentar. Fixou os olhos em Armanskij sem dizer nada. Depois balançou a cabeça, levantou-se e saiu, como de hábito sem se despedir. Uma vez obtida a resposta que esperava, o interesse por Armanskij tinha evaporado. Ele sorriu com serenidade. O fato de ela ter vindo se aconselhar com ele significava um avanço em seu processo de socialização.
Abriu uma pasta com um relatório sobre a segurança de um museu onde estava prevista uma exposição de impressionistas franceses. Depois deixou a pasta de lado e olhou para a porta por onde Salander acabara de sair. Lembrou-se do dia em que a vira rindo na companhia de Mikael Blomkvist e perguntou-se se ela estava ficando adulta ou se era Blomkvist que a atraía. Mas sentiu também uma inquietação. Ele nunca conseguira se livrar da sensação de que Lisbeth Salander era uma vítima perfeita. E eis que agora ela seguia a pista de um assassino furioso numa aldeia perdida.
Retornando em direção ao norte, Lisbeth sentiu vontade de passar na casa de saúde de Äppelviken para ver sua mãe. Exceto pela visita no Dia de São João, ela não via a mãe desde o Natal e culpava-se por visitá-la tão pouco. Essa nova visita, apenas algumas semanas depois, era incomum.
A mãe estava na sala de convivência. Lisbeth ficou pouco mais de uma hora e a levou para passear no laguinho dos patos, no jardim em frente à instituição. A mãe continuava confundindo-a com a irmã. Como de hábito, não estava inteiramente presente, embora a visita parecesse agitá-la.