Quando Lisbeth despediu-se, a mãe não quis soltar sua mão. Lisbeth prometeu voltar em breve, mas a mãe a olhou com inquietação e um ar muito infeliz.
Como se estivesse pressentindo uma catástrofe iminente.
Mikael passou duas horas no jardim dos fundos da casa, folheando os apócrifos, sem chegar a outra conclusão senão a de que estava perdendo tempo.
Mas de repente lhe ocorreu uma pergunta: Harriet teria sido mesmo tão crente como parecia? Seu interesse pelos estudos bíblicos se revelou no último ano antes de seu desaparecimento. Ela fizera a ligação entre um certo número de citações bíblicas e uma série de assassinatos, a seguir lera com aplicação não somente a Bíblia mas os apócrifos, e se interessara pelo catolicismo.
Teria iniciado a mesma investigação a que Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander se dedicavam trinta e sete anos mais tarde? Teria sido a busca de um assassino que estimulara seu interesse, e não a religiosidade? O pastor Falk, em todo caso, dera a entender que ela parecia alguém em busca, e não uma boa cristã.
Suas reflexões foram interrompidas por um chamado de Erika no celular.
— Queria apenas te dizer que eu e Lars vamos tirar férias na semana que vem. Estarei fora por um mês.
— Aonde vocês vão?
— Nova York. Lars tem uma exposição e depois vamos ao Caribe. Um amigo nos emprestou uma casa em Antígua, onde ficaremos duas semanas.
— Maravilha! Divirtam-se. E dê lembranças ao Lars.
— Não tiro férias de verdade há três anos. A próxima edição está pronta e o número seguinte já está quase terminado. Gostaria que você supervisionasse, mas Christer prometeu se encarregar disso.
— Ele pode me chamar, se precisar de ajuda. E como ficou o caso de Janne Dahlman?
Ela hesitou um instante.
— Ele sai de férias na semana que vem. Pus Henry como secretário de redação temporário. Ele e Christer vão conduzir o barco.
— Certo.
— Não confio em Dahlman, mas ele está se esforçando. Estarei de volta no dia 7 de agosto.
Eram cerca de sete da noite, e Mikael havia tentado falar com Cecilia Vanger cinco vezes. Deixara um bilhete na casa dela pedindo que entrasse em contato com ele, mas não obtivera resposta.
Fechou decididamente os apócrifos, vestiu uma roupa esportiva e trancou a porta antes de sair para o seu jogging de todos os dias.
Seguiu pelo caminho estreito ao longo da praia, depois tomou a direção do bosque. Atravessou o mais depressa que pôde uma zona de matagal e árvores desenraizadas até chegar exausto à Fortificação, com a pulsação bastante acelerada. Deteve-se num ponto da trincheira, ao sol, e fez alongamentos por alguns minutos.
De repente, ouviu uma forte detonação, ao mesmo tempo que uma bala atingia a parede de concreto a alguns centímetros de sua cabeça. Depois sentiu uma dor na raiz dos cabelos, onde os estilhaços abriram uma ferida profunda.
Mikael ficou petrificado durante o que lhe pareceu uma eternidade, incapaz de entender o que havia acontecido. Em seguida jogou-se no chão na trincheira, machucando o ombro ao aterrissar. O segundo tiro ocorreu no instante em que mergulhava. A bala cravou-se na parede de concreto, bem no lugar onde ele havia estado.
Mikael levantou a cabeça e olhou em volta. Estava mais ou menos na metade da Fortificação. À direita e à esquerda, passagens estreitas, com profundidade de um metro e cobertas de vegetação, conduziam a abrigos de tiro espalhados numa linha de duzentos e cinquenta metros de comprimento. Pôs-se a correr, curvado, na direção sul do labirinto.
Então, ouviu ressoar dentro dele a voz inimitável do capitão Adolfsson no dia de um exercício de inverno na escola de infantaria em Kiruna. Puta que pariu, Blomkvist, baixe a cabeça se não quiser ter o rabo arrancado por uma bala! Vinte anos depois, se lembrava dos ensinamentos do capitão Adolfsson.
Cerca de sessenta metros adiante, parou, sem fôlego e com o coração palpitando. Não ouvia outros ruídos a não ser o da própria respiração. O olho humano percebe os movimentos mais rapidamente que as formas e as silhuetas. Não fique afoito quando se desloca! Mikael levantou os olhos alguns centímetros acima da borda do abrigo. O sol estava bem à sua frente e o impedia de distinguir os detalhes, mas ele não percebeu nenhum movimento.
Baixou a cabeça e prosseguiu até o último abrigo. Pouco importa se o inimigo tem armas muito boas. Enquanto não puder te ver, ele não pode te tocar. Proteja-se, proteja-se! Não se exponha!
Mikael achava-se agora a uns trezentos metros das terras da fazenda de Östergarden. Quarenta metros à frente, estendia-se um espesso matagal de arbustos. Mas, para alcançar esse matagal partindo da trincheira, ele seria obrigado a descer uma encosta onde estaria totalmente exposto. Era a única saída. Às suas costas havia o mar.
Mikael agachou-se e raciocinou. De repente teve consciência da dor nas têmporas; percebeu que sangrava abundantemente, sua camiseta estava molhada de sangue. Fragmentos da bala ou estilhaços da parede haviam aberto uma ferida profunda na raiz dos cabelos. As feridas do couro cabeludo sempre sangram muito e por muito tempo, pensou, antes de se concentrar novamente na situação. Um único tiro poderia ter sido um disparo acidental. Dois tiros significavam que alguém tentara matá-lo. Não sabia se o atirador ainda estava nas proximidades, com o rifle recarregado esperando que ele se mostrasse.
Tentou se acalmar e pensar de forma racional. Suas opções eram esperar ou abandonar o local de uma maneira ou de outra. Se o atirador ainda estivesse à espreita, a segunda possibilidade não convinha de modo algum. Mas, se ficasse ali esperando, o atirador poderia tranquilamente subir até a Fortificação, encontrá-lo e matá-lo à queima-roupa.
Ele (ou ela?) não pode saber se fui para a direita ou para a esquerda. Um rifle, talvez para a caça de alce. Provavelmente com mira telescópica. Isso significava que o atirador tinha um campo de visão limitado se observasse Mikael através da lente.
Se estiver encurralado, tome a iniciativa. É melhor do que esperar. Ele espreitou o momento favorável e escutou os ruídos por dois minutos; então ergueu-se sobre a borda da trincheira e correu encosta abaixo o mais rápido que pôde.
Ouviu um terceiro disparo, mas bem atrás de suas costas, quando estava na metade do caminho para o matagal. Um instante depois, lançou-se de barriga na cortina de arbustos e rolou num mar de urtigas. Imediatamente voltou a ficar de pé e, ainda curvado, começou a se afastar do atirador. Cinquenta metros adiante, parou e escutou. Ouviu um galho estalar em alguma parte entre ele e a Fortificação. Suavemente, estendeu-se de novo no chão.
Sobre os cotovelos, cambada! Não de quatro patas! Era uma das expressões favoritas do capitão Adolfsson. Mikael percorreu os cento e cinquenta metros seguintes rastejando na vegetação do matagal. Avançou sem fazer ruído, muito atento aos galhos. Em dois momentos, ouviu estalos no matagal. O primeiro parecia vir de perto, talvez uns vinte metros à direita de onde estava. Ficou totalmente imóvel, como que petrificado. Ao cabo de um momento, ergueu devagar a cabeça e espiou; não viu ninguém. Continuou imóvel por muito tempo, com os nervos alertas, pronto para fugir ou mesmo lançar um contra-ataque se o inimigo viesse em sua direção. O estalo que ouviu a seguir vinha de mais longe. Depois nada, silêncio.
Ele sabe que estou aqui. Mas terá se instalado em algum lugar à espera de que eu comece a me mexer ou terá ido embora?
Mikael continuou avançando no matagal até chegar ao cercado do pasto de Östergarden.
Começava outro momento crítico. Um caminho costeava o cercado no lado de fora. Ele ficou de bruços no chão, à espreita. Viu as construções à sua frente, a cerca de quatrocentos metros, num terreno com ligeiro declive; à direita, viu umas dez vacas pastando. Como se explica que ninguém tenha ouvido os disparos e tenha vindo ver o que aconteceu? Verão. Não deve haver ninguém na fazenda neste momento.