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Nem pensar em se aventurar pelo pasto — estaria totalmente exposto —, e o caminho ao longo do cercado era o lugar onde ele mesmo teria se posicionado para ter o campo livre para atirar. Retrocedeu discretamente pelo matagal e prosseguiu até chegar a um bosque de pinheiros.

Mikael contornou as terras de Östergarden e dirigiu-se ao monte Sul para regressar. Ao passar pela fazenda, constatou que o carro não estava lá. Deteve-se no alto do monte Sul e contemplou Hedeby. As pequenas cabanas do antigo porto dos pescadores estavam ocupadas por veranistas; algumas mulheres de maio conversavam num pontão. Ele sentiu o cheiro de carne assada num braseiro. Crianças brincavam na água em volta dos pontões.

Mikael consultou o relógio. Pouco mais de oito da noite. Os tiros haviam sido disparados cinquenta minutos atrás. Gunnar Nilsson regava o jardim, de calção e nu da cintura para cima. Há quanto tempo você está aí? A casa de Henrik Vanger estava desabitada, com exceção da governanta Anna Nygren. A de Harald Vanger parecia deserta como sempre. Viu Isabella Vanger sentada no jardim dos fundos de sua casa. Falava com alguém. Mikael demorou um pouco para perceber que era Gerda Vanger, nascida em 1922 e de saúde frágil, que morava com o filho Alexander numa das casas atrás da de Henrik. Nunca a encontrara, mas algumas vezes a vira em seu terreno. A casa de Cecilia Vanger parecia vazia, porém de repente Mikael viu uma luz se acender na cozinha. Ela está em casa. Será que o atirador poderia ser uma mulher? Não duvidava que Cecilia Vanger soubesse manejar um rifle. Mais adiante viu o carro de Martin Vanger na esplanada diante de sua casa. E você, há quanto tempo está em casa?

Ou teria sido alguma outra pessoa, em quem ele ainda nem sequer pensara? Frode? Alexander? Possibilidades demais.

Desceu o monte Sul, seguiu o caminho até o povoado e foi diretamente para casa, sem encontrar ninguém. A primeira coisa que viu foi a porta da casa entreaberta. Contraiu-se instintivamente. Depois sentiu cheiro de café e viu Lisbeth Salander pela janela da cozinha.

* * *

Lisbeth ouviu Mikael no vestíbulo e virou-se para ele. Ficou paralisada. O rosto de Mikael tinha um aspecto assustador, com sangue por toda parte começando a coagular. O lado esquerdo da camiseta estava molhado de sangue.

— Foi só um ferimento no couro cabeludo; está sangrando muito, mas não é grave — disse Mikael antes que ela tivesse tempo de abrir a boca.

Ela se virou e foi buscar o estojo de primeiros socorros no guarda-louças, um estojo que continha apenas dois rolos de algodão, gaze e uma caixinha de curativos adesivos. Ele tirou as roupas, deixou-as espalhadas no chão e foi se olhar no espelho do banheiro.

O ferimento na têmpora tinha uns três centímetros de comprimento e era tão profundo que Mikael pôde ver um bom pedaço de carne. Continuava sangrando e provavelmente precisaria de alguns pontos, mas um simples curativo resolveria, ele pensou. Umedeceu a toalha e enxugou o rosto.

Apoiou a toalha sobre a têmpora e entrou no chuveiro para uma ducha, fechando os olhos. Deu então um murro tão forte na parede que seus dedos doeram. Filho-da-puta!, pensou. Vou pegar você!

Quando Lisbeth tocou seu braço, ele sentiu um sobressalto, como se tivesse recebido uma descarga. Olhou-a com tanta raiva nos olhos que, sem querer, ela deu um passo para trás. Lisbeth entregou-lhe um sabonete e voltou para a cozinha sem dizer uma palavra.

Mikael pôs três curativos adesivos ao sair do chuveiro. Entrou no quarto, vestiu uma calça e uma camiseta limpas, pegou uma pasta com as fotos que copiara na impressora. A raiva o fazia quase tremer.

— Fique aqui! — ordenou, áspero, a Lisbeth Salander.

Foi até a casa de Cecilia Vanger e calcou a mão na campainha. Depois de um minuto e meio ela atendeu.

— Não quero falar com você — ela disse. Depois, viu o rosto dele e o sangue que já começava a vazar dos curativos. — O que aconteceu?

— Deixe-me entrar. Precisamos conversar. Ela hesitou.

— Não temos nada a nos dizer.

— Agora temos, sim, coisas a nos dizer e podemos discuti-las aqui na porta ou na cozinha.

A voz de Mikael deixava transparecer sua raiva contida e Cecilia Vanger deu um passo para o lado, deixando-o entrar. Ele foi se sentar à mesa da cozinha.

— O que aconteceu? — ela perguntou novamente.

— Você diz que as minhas investigações sobre o desaparecimento de Harriet são um passatempo terapêutico para Henrik. É possível, mas uma hora atrás alguém tentou acertar um tiro na minha cabeça e, na noite passada, alguém pôs um gato cortado em pedaços na entrada de casa.

Cecilia Vanger abriu a boca, mas Mikael a interrompeu.

— Cecilia, pouco me importa quais são as suas idéias fixas e o que a preocupa, ou por que agora você me odeia. Não vou mais me aproximar de você, não precisa ter medo que eu a importune ou a persiga. Neste momento, eu gostaria de nunca ter ouvido falar de você nem da família Vanger. Mas quero que responda às minhas perguntas. Quanto mais depressa responder, mais depressa se livrará de mim.

— O que quer saber?

— Primeiro: onde você estava uma hora atrás? O rosto de Cecilia turvou-se.

— Eu estava em Hedestad. Voltei faz meia hora.

— Há testemunhas que comprovem isso?

— Sei lá. Não preciso me justificar para você.

— Segundo: por que abriu a janela do quarto de Harriet Vanger no dia em que ela desapareceu?

— O que você disse?

— Você ouviu minha pergunta. Durante todos esses anos, Henrik tentou descobrir quem abriu a janela do quarto de Harriet exatamente nos minutos críticos do seu desaparecimento. Todo mundo negou ter feito isso. Alguém está mentindo.

— E o que o faz pensar que fui eu?

— Esta foto — disse Mikael, jogando a fotografia em cima da mesa. Cecilia Vanger aproximou-se para olhar a foto. Mikael teve a impressão de ver surpresa e medo. Ela levantou os olhos para ele. Mikael sentiu um pequeno filete de sangue escorrer pelo rosto e pingar na camiseta.

— Havia umas sessenta pessoas na ilha naquele dia — ele disse. — Vinte e oito eram mulheres. Cinco ou seis tinham cabelos louros e um pouco compridos. Só uma usava um vestido claro.

Ela olhou intensamente a foto.

— E acha que sou eu nesta foto?

— Se não é, eu gostaria muito de saber quem você acha que é. Ninguém sabe da existência dessa foto até agora. Há várias semanas a tenho comigo, mas não mostrei a Henrik nem a qualquer outra pessoa, porque tinha um medo terrível de transformar você em suspeita ou de prejudicá-la. Mas preciso de uma resposta.

— Terá a sua resposta. — Ela pegou a foto e a estendeu a ele. — Nesse dia não fui ao quarto de Harriet. Não sou eu nessa foto. Não tenho absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela.

Dirigiu-se à porta de entrada.

— Essa é a minha resposta. Agora quero que vá embora. E acho que deveria mostrar esse ferimento a um médico.

Lisbeth Salander o levou ao hospital de Hedestad. Mikael levou dois pontos, puseram-lhe um grande curativo sobre a ferida e deram-lhe uma pomada de cortisona para os arranhões de urtiga no pescoço e nas mãos.

Ao deixar o hospital, Mikael refletiu demoradamente se não deveria avisar a polícia. Mas logo imaginou as manchetes: "Jornalista condenado por difamação é alvo de atirador misterioso". Ele balançou a cabeça.

— Vamos para casa — disse a Lisbeth.

Ao regressarem à ilha já estava escuro, o que convinha bem a Lisbeth Salander. Ela pôs uma sacola em cima da mesa da cozinha.

— Peguei emprestado um equipamento da Milton Security e chegou a hora de utilizá-lo. Prepare um café enquanto isso.