Duas vezes durante a noite ela acordara com terríveis pesadelos, tremendo e gritando por Erikki.
— Está tudo bem, Azadeh, eu estou aqui. Foi só um sonho, agora você está em segurança.
— Não, não, não estamos, eu não me sinto segura, Erikki. O que está acontecendo comigo? Vamos voltar para Tabriz, ou então vamos embora para longe dessas pessoas horríveis.
De manhã, Erikki deixara-a para se encontrar com McIver e Gavallan, e ela dormira mais um pouco, mas isso não fez com que ela se sentisse mais descansada. Tinha passado o resto da manhã pensando ou ouvindo as novidades de Xarazade a respeito da sua ida a Galeg Morghi, ou escutando os últimos boatos contados pelos empregados: mais generais fuzilados, novas prisões, a multidão invadindo as prisões, hotéis ocidentais incendiados ou atacados. Boatos de que Bazargan tomara as rédeas do governo, de que os mujhadins tinham-se rebelado no sul, de que os curdos se rebelaram no norte, que o Azerbeijão declarara-se independente, que as tribos nômades dos kash kai e dos bakhtiaris queriam livrar-se do jugo de Teerã; que todo mundo estava depondo as armas ou que ninguém depusera as armas. Rumores de que o primeiro-ministro Bakhtiar fora capturado e morto ou de que escapara para as montanhas, para a Turquia ou para a América; de que o presidente Carter estava preparando uma invasão ou de que Carter reconhecera o governo de Khomeini; de que havia tropas soviéticas na fronteira, prontas para invadir ou de que Brejnev estava vindo para Teerã para cumprimentar Khomeini; de que o xá iria pousar no Curdistão, apoiado pelas tropas americanas, ou de que ele fora morto no exílio.
Depois ela tinha ido almoçar com os pais de Xarazade na casa dos Bak-ravan, perto do bazar, mas só depois de Xarazade ter insistido para que usasse o chador, ela que odiava o chador e tudo o que ele representava. Mais rumores na enorme casa, mas lá eles eram favoráveis, não havia medo, mas uma confiança absoluta. Muita abundância, como sempre, exatamente como em sua própria casa, em Tabriz, com os empregados sorrindo, sentindo-se seguros e dando graças a Deus pela vitória. Jared Bakravan dissera a eles, jovialmente, que agora que o bazar ia ser reaberto, e todos os bancos estrangeiros fechados, os negócios voltariam a ser maravilhosos como eram antes das maléficas leis que o xá tinha instituído.
Depois do almoço, elas voltaram para o apartamento de Xarazade. A pé. Envoltas no chador. Não houvera qualquer problema e todos os homens trataram-nas com deferência. O bazar estava apinhado de gente, com pouca coisa para vender, embora cada comerciante anunciasse uma abundância de mercadorias prontas para serem embarcadas por caminhão, trem ou avião, dizendo que os portos estavam abarrotados de navios carregados de mercadorias. Nas ruas, milhares de pessoas andavam de um lado para o outro, o nome de Khomeini estava nos lábios de todo mundo, entoando Allah-u Akbarr, quase todos os homens e rapazes armados — mas nenhum velho. Em algumas áreas, Faixas Verdes, em vez da polícia, dirigiam o tráfego amadoristicamente, ou ficavam por ali, loucos por uma briga. Em outras áreas, havia a polícia, como sempre. Dois tanques passaram por elas, dirigidos por soldados, com montes de guardas e civis em cima, acenando para os pedestres que aplaudiam.
Mesmo assim, todo mundo estava tenso sob essa capa de alegria, principalmente as mulheres, enroladas em suas mortalhas. Num determinado momento, ao virarem uma esquina, viram um grupo de rapazes cercando uma mulher de cabelos escuros, vestida com roupas ocidentais, debochando dela, gritando insultos, fazendo gestos obscenos, muitos deles se exibindo, sacudindo os pênis para ela. A mulher tinha cerca de trinta anos, estava elegantemente vestida, com um casaco curto e uma saia, pernas e cabelos compridos e um pequeno chapéu. De repente, um homem abriu caminho no meio da multidão e juntou-se a ela, gritando que eles eram ingleses e que os deixassem em paz, mas os homens não lhe deram atenção, empurrando-o e concentrando-se na mulher. Ela estava apavorada.
Não havia nenhuma maneira de Xarazade e Azadeh contornarem a multidão, que crescia rapidamente, e elas se viram obrigadas a presenciar tudo, até que apareceu um mulá que disse à multidão para ir embora, e fez uma preleção para os dois estrangeiros sobre a necessidade de obedecerem aos costumes islâmicos. Quando, finalmente, chegaram em casa, estavam cansadas e se sentiam sujas. Tiraram a roupa e se atiraram na cama.
— Estou satisfeita de ter saído hoje — dissera Azadeh, com uma voz cansada, profundamente preocupada. — É melhor que nós, mulheres, organizemos um protesto antes que seja tarde demais. É melhor que marchemos pelas ruas, sem véu nem chador, para mostrarmos aos mulás o nosso ponto de vista: que não somos escravas, que temos direitos, e que usar o chador é uma coisa que depende de nós e não deles.
— Sim, vamos fazer isso! Afinal de contas, nós também ajudamos nesta vitória! — Xarazade bocejara, semi-adormecida. — Oh, eu estou tão cansada.
Aquela soneca tinha ajudado.
Azadeh observava preguiçosamente as bolhas de espuma estourando, a água agora mais quente, sentindo o cheiro adocicado e agradável do vapor. Ela se ergueu por um momento, alisando a espuma dos seios e braços.
— E curioso, Xarazade, mas eu fiquei contente por estar usando o chador hoje. Aqueles homens eram tão horríveis.
— Os homens nas ruas são sempre horríveis, querida Azadeh. — Xarazade abriu os olhos e observou-a, sua pele dourada brilhando, os seios orgulhosos. — Você é tão linda, querida Azadeh.
— Ah, obrigada, mas você é que é linda. — Azadeh pôs a mão no estômago da amiga e afagou-a. — Mamãezinha, hein?
— Oh, eu espero tanto que sim. — Xarazade suspirou, fechou os olhos e deixou-se embalar pelo calor. — Eu não consigo me imaginar como mãe. Vou saber daqui a três dias. Quando é que você e Erikki vão ter filhos?
— Daqui a um ou dois anos. — Azadeh manteve sua voz calma ao contar a mesma mentira que já tinha contado tantas vezes. Mas ela estava com muito medo de ser estéril, pois não usava anticoncepcionais desde o casamento e desejara, desde o começo, dar um filho a Erikki. Ela era perseguida sempre pelo mesmo pesadelo: de que o aborto tivesse acabado com qualquer possibilidade de ter filhos, por mais que o médico alemão a tranqüilizasse. Como pude ser tão burra?
Tão fácil. Tão apaixonada. Eu tinha apenas 17 anos e estava apaixonada, profundamente apaixonada. Não como agora, com Erikki, por quem daria de bom grado a minha vida. Com Erikki é de verdade e para sempre e gentil e apaixonado e seguro. Com o meu Johnny de olhos claros era como um sonho.
Ah, eu me pergunto onde Johnny estará agora, o que estará fazendo, tão alto e louro, com seus olhos azuis-acinzentados e tão britânico. Com quem terá se casado? Quantos corações mais você partiu, meu querido?
Naquele verão ele estava no colégio em Rougemont — a cidadezinha próxima da que ela estava — ostensivamente para aprender francês. Foi depois que Xarazade voltou. Ela o conhecera no Sonnenhof, apanhando sol, apreciando toda a beleza de Gstaad, cercada de montanhas. Ele tinha 19 anos, ela ia fazer 17 daí a três dias, e durante todo aquele verão eles andaram por toda parte, pelas montanhas e florestas, nadando nos riachos, brincando, fazendo amor, sempre mais aventureiro lá no alto das nuvens.
Mais nuvens do que eu gosto de pensar, disse a si mesma sonhadoramente, eu estava com a cabeça nas nuvens naquele verão, aprendendo a respeito dos homens e da vida, mas sem aprender. Então, no outono, ele lhe dissera:
— Sinto muito, mas agora tenho que partir, tenho que voltar para a universidade, mas estarei de volta no Natal.
E nunca voltou. E muito antes do Natal ela descobrira. Toda a angústia e o terror onde só deveria ter havido felicidade. Apavorada de que a escola descobrisse, pois aí os seus pais teriam que ser informados. Era contra a lei fazer um aborto na Suíça sem o consentimento dos pais e ela foi para a Alemanha onde aquilo era possível, tendo a sorte de encontrar o médico gentil que a tranqüilizara. Não tinha havido nenhuma dor, nenhum problema — só uma pequena dificuldade para conseguir dinheiro. Ela ainda estava apaixonada por Johnny. No ano seguinte, terminada a escola, tudo mantido em segredo, ela voltara para Tabriz. A madrasta, de algum modo, descobrira — tenho certeza que Najoud, minha irmã de criação, me traiu, não foi ela que me emprestou o dinheiro? E depois, também papai descobriu.