— Fui para um colégio, Excelência, mas a maior parte do tempo eu tive professores particulares. — Lochart apanhou sua valise de piloto, que trazia com ele por precaução, e foi para a fila. Seu lugar já estava ocupado. Na margem da estrada, vários passageiros aliviavam a bexiga ou eva cuavam, homens, mulheres e crianças.
— E Vossa Excelência trabalha com petróleo? — O mulá foi para a fila junto com ele, e imediatamente as pessoas saíram do caminho para dar-lhe passagem. Dentro do ônibus, os passageiros já estavam discutindo, e alguns gritavam com o motorista para que se apressasse.
— Sim, para a grande IranOil — disse Lochart, bem consciente de que os que estavam por perto também escutavam, tentado chegar mais perto para ouvir melhor. Não falta muito agora, pensou, o aeroporto não pode estará mais de alguns quilômetros à frente. Pouco antes do meio-dia avistara um 212 se preparando para descer, vindo da direção do golfo. O aparelho estava muito distante para que pudesse ver se era civil ou militar, mas ia na direção do aeroporto. Vai ser formidável encontrar Rudi e os outros, dormir e...
— O motorista disse que o senhor estava de férias perto de Kermanshah?
— Em Luristan, ao sul de Kermanshah. — Lochart se concentrou. Tornou a contar a história que tinha preparado, a mesma que contara ao vendedor de passagens em Ahwaz, e aos Faixas Verdes que também quiseram saber quem ele era e por que estava em Ahwaz. — Eu estava viajando de carona pelo norte de Luristan, nas montanhas, e fiquei preso numa aldeia por causa de uma nevasca, por uma semana. O senhor está indo para Shiraz? — Essa era a destinação final do ônibus.
— É em Shiraz que fica a minha mesquita e foi lá que eu nasci. Venha. Vamos nos sentar juntos. — O mulá pegou o lugar mais próximo, ao lado de um velho, pôs um dos seus filhos no colo, junto com a arma, e deixou espaço para Lochart do lado do corredor. Relutante, Lochat obedeceu, sem muita vontade de se sentar ao lado de um mulá falante e inquisidor, mas ao mesmo tempo grato por conseguir um lugar. O ônibus estava enchendo rapidamente. As pessoas passavam por ele tentando arranjar lugar ou ir mais para trás.
— O seu país, o Canadá, faz fronteira com o Grande Satã, não?
— O Canadá e a América têm fronteiras comuns — disse Lochart, com a bile subindo à boca. — A grande maioria dos americanos são Gente do Livro.
— Ah, sim, mas muitos são judeus e sionistas, e judeus e sionistas e cristãos são contra o Islã, são inimigos do Islã, e portanto inimigos de Deus. Não é verdade que os judeus e os sionistas governam o Grande Satã?
— Se o senhor está se referindo à América, aga, não é verdade.
— Mas se o imã diz que é, então é. — O mulá foi bastante gentil e confiante e citou o Corão: — Pois Deus está zangado com eles, e eles viverão atormentados para sempre. — E depois acrescentou: — Se o imã...
Houve um tumulto no fundo do ônibus e eles se viraram e viram um dos iranianos puxar raivosamente o indiano de turbante para fora do seu assento para tomar o lugar dele. O indiano deu um sorriso forçado e ficou em pé. De acordo com o costume, era sempre o primeiro a se sentar que tinha o direito de ficar sentado sem ser molestado. A torrente de vozes recomeçou e agora um outro homem, apertado no corredor, começou a xingar todos os estrangeiros em voz alta. Estava malvestido, armado, e ao lado de dois japoneses que estavam apertados num banco junto com um velho curdo maltrapilho, olhando para eles.
— Por que estrangeiros infiéis podem ficar sentados enquanto eu estou em pé? Com a ajuda de Deus, não somos mais lacaios de infiéis! — disse o homem, com mais raiva ainda e fez um sinal para eles, dizendo: — Fora!
Nenhum dos dois japoneses se mexeu. Um deles tirou os óculos e sorriu para o homem. O homem hesitou, começou a avançar mas pensou melhor e então virou-se e gritou para o motorista andar depressa. Pouco antes do japonês tornar a pôr os óculos, seu olhar cruzou com o de Lochart, e ele o cumprimentou com a cabeça e sorriu.
Lochart devolveu o sorriso. Em Ahwaz, enquanto estavam todos se dirigindo para o ônibus, um dos japoneses dirigira-se a Lochart num inglês razoáveclass="underline"
— Siga-nos, senhor, na hora do rush, os ônibus e trens de Tóquio são muito piores. — Demonstrando extrema gentileza, os dois abriram espaço rapidamente, encontraram um lugar para ele e foram sentar-se no fundo do ônibus. Durante a parada de meio-dia, tinham conversado rapidamente, eles disseram que eram engenheiros voltando de uma licença e que estavam indo para a Irã-Toda.
— Ah — disse alegremente o mulá, vendo o motorista voltar para o seu lugar —, agora nós vamos continuar, graças a Deus.
Com um grande floreio, o motorista ligou o motor e o ônibus saiu se arrastando.
— Próxima parada: Bandar Delam — gritou. — Se Deus quiser.
— Se Deus quiser. — O mulá estava muito satisfeito. Mais uma vez voltou a atenção para Lochart e gritou por sobre o barulho: — Aga, o que o senhor estava dizendo a respeito do Grande Satã?
Lochart estava com os olhos fechados e fingiu que não tinha ouvido.
— O que o senhor estava dizendo, aga, sobre o Grande Satã? — repetiu o mulá, tocando nele.
— Eu não estava dizendo nada, aga.
— O quê? Eu não ouvi.
Lochart manteve um ar gentil, sabendo do perigo que corria, e disse mais alto:
— Eu não estava dizendo nada, aga. Viajar é cansativo, não? — Tornou a fechar os olhos. — Acho que vou dormir um pouco.
— Por que não diz nada? — Um rapaz que estava em pé no corredor gritou para ele acima do barulho do motor. — A América é responsável por todos os nossos problemas. Se não fosse pela América, haveria paz no mundo inteiro!
Obstinadamente, Lochart manteve os olhos fechados e tentou fechar os ouvidos, sabendo que estava quase explodindo. Uma parte dele desejando estar com a automática no bolso, a outra parte satisfeita por ela estar na mala. Ele sentiu o mulá sacudindo-o.
— Antes de dormir, aga, o senhor não concorda que o mundo seria muito melhor sem a maldade dos americanos?
Lochart lutou para controlar a raiva e conservou os olhos fechados. Outra sacudidela, bem mais rude, desta vez vinda do corredor, e o homem gritou no seu ouvido:
— Responda à Sua Excelência!
De repente, ficou cheio de toda a propaganda antiamericana e de todas as mentiras que eram impostas continuamente a eles. Branco de raiva, abriu os olhos, empurrou a mão do homem e explodiu em inglês:
— Bem, eu vou lhe dizer, mulá, é melhor você agradecer a Deus pelo fato da América existir, porque sem ela não haveria nada no mundo e nós todos estaríamos num maldito gulag ou debaixo da maldita terra, você, eu, esse idiota e até Khomeini!
— O quê?
Viu o mulá olhando espantado para ele — e percebeu que tinha falado em inglês. Pondo um freio na língua, disse em farsi, sabendo que não havia nenhuma maneira de explicar logicamente:
— Eu estava citando a Sagrada Bíblia em inglês — disse, inventando uma mentira. — Estava citando Abraão quando este estava muito zangado. Abraão disse: "A maldade entra na terra sob muitas formas... é dever do fiel proteger-se contra a maldade, qualquer maldade... toda a maldade". Não é?
O mulá o olhou estranhamente e citou o Corão:
— "E Deus disse a Abraão, Eu farei de você um líder da humanidade, e Abraão disse, e também dos meus descendentes! Deus disse: As minhas promessas não incluem os ímpios."
— Concordo — disse Lochart. — E agora preciso meditar sobre Deus, o único Deus, o Deus de Abraão e Moisés e Jesus e Maomé, cujo Nome seja louvado! — Lochart fechou os olhos. Seu coração disparara. A qualquer momento, esperava que o rapaz batesse com a coronha do rifle na sua cara ou que o mulá mandasse parar o ônibus. Não esperava nenhuma piedade. Mas o momento passou e eles o deixaram entregue às suas supostas orações.