Seus sentidos se aguçaram na escuridão. As estrelas estavam ocultas atrás de uma camada fina de nuvens. Agora! Com firmeza, ele saiu e caminhou ao longo da fileira de cabanas, em direção às árvores, e então se viu preso na rede que parecia ter caído do céu, lutando por sua vida.
Havia quatro nativos nas pontas da rede usada para apanhar cabritos selvagens. Com muita habilidade, eles o prenderam cada vez mais apertado, e embora ele urrasse de ódio e com sua imensa força conseguisse arrebentar algumas das cordas, em pouco tempo estava caído na neve, impotente. Por um instante, ficou caído lá, ofegante, mas logo tornou a tentar livrar-se das cordas, com a sensação de impotência fazendo-o berrar. Mas quanto mais ele lutava contra as cordas, mais apertadas elas ficavam. Finalmente, parou de lutar e se deitou, tentando recuperar o fôlego, e olhou em volta. Estava cercado. Toda a aldeia estava acordada, vestida e armada. Obviamente, estavam esperando por ele. Ele nunca tinha visto nem sentido tanto ódio.
Foi preciso cinco homens para erguê-lo e arrastá-lo para a cabana de reuniões e atirá-lo rudemente no chão de terra diante do xeque Bayazid que estava sentado de pernas cruzadas em cima de algumas peles, no seu lugar de honra junto ao fogo. A cabana era ampla, encardida de fumaça e estava cheia de homens da tribo.
— Então — disse o xeque —, então você ousou me desobedecer? Erikki ficou quieto, recuperando as forças. O que poderia dizer?
— Durante a noite, um dos meus homens voltou do palácio do khan. — Bayazid estava tremendo de ódio. — Ontem à tarde, por ordem do khan, o meu mensageiro teve a garganta cortada, contra todas as leis do cavalheirismo. O que você tem a dizer sobre isso? Ele teve a garganta cortada como um cão! Como um cão!
— Eu... eu não posso acreditar que o khan tenha feito uma coisa dessas — disse Erikki — não posso acreditar.
— Pelos Nomes de Deus, a garganta dele foi cortada. Ele está morto e nós estamos desonrados. Todos nós, inclusive eu! Desgraçados, e por sua causa!
— O khan é um demônio. Eu sinto muito, mas não...
— Nós tratamos o khan com honradez e tratamos você com honradez, você foi um despojo de guerra tirado dos inimigos do khan e nossos, você é casado com a filha dele e ele tem mais sacos de ouro do que os pêlos de um cabrito. O que são dez milhões riais para ele? Um pouco de merda de cabrito. Mas o pior é que ele nos privou da nossa honra. Morte para ele!
Elevou-se um murmúrio entre os que estavam observando e esperando, sem compreender inglês, mas percebendo a cólera do chefe. Mais uma vez ele exclamou com ódio:
— Insha'Allah! Agora nós vamos soltá-lo como você deseja, a pé, e depois vamos caçá-lo. Nós não o mataremos com balas e nem você verá o pôr-do-sol, e a sua cabeça será um presente para o khan. — O xeque repetiu o castigo na sua própria língua e fez um gesto com a mão. Os homens avançaram.
— Espere, espere! — Erikki gritou, com o medo dando-lhe uma idéia.
— Você deseja implorar misericórdia? — Bayazid disse com desprezo. — Eu pensei que você fosse um homem. Foi por isso que não ordenei que cortassem a sua garganta enquanto você dormia.
— Não quero misericórdia, mas sim vingança! — Então Erikki urrou: — Vingança! — Houve um silêncio de assombro. — Para você e para mim! Você não merece vingar-se de tal desonra?
O xeque hesitou.
— Que truque é esse?
— Eu posso ajudá-lo a recuperar a honra. Só eu posso. Vamos invadir o palácio do khan e nos vingar dele. — Erikki rezou aos seus antigos deuses para que transformassem suas palavras em ouro.
— Você está louco!
— O khan é mais meu inimigo do que seu. Por que ele desgraçaria a nós dois a não ser para lançar a sua fúria contra mim? Eu conheço o palácio. Posso colocar você e mais 15 homens armados dentro do pátio em poucos segundos e...
— Loucura — respondeu o xeque. — Você acha que vamos desperdiçar as nossas vidas como os idiotas tomadores de haxixe? O khan tem muitos guardas.
— Cinqüenta e três dentro dos muros, não mais do que quatro ou cinco de serviço de cada vez. Os seus soldados são tão fracos que não possam lidar com cinqüenta e três? Nós temos a surpresa do nosso lado. Um ataque repentino vindo do céu, uma investida impiedosa para vingar a sua honra. Eu poderia fazê-lo entrar e sair do mesmo jeito em questão de minutos. Abdullah Khan está doente, muito doente, os guardas não estarão preparados e nem os empregados. Eu sei como entrar, onde ele dorme, tudo...
Erikki ouviu a sua própria voz animando-se, sabendo que poderia conseguir: o ataque violento por cima dos muros e o pouso súbito, depois saltaria, mostraria o caminho para entrar no palácio, subiria as escadas, atravessaria o corredor, derrubaria Ahmed e quem mais estivesse no caminho, entraria no quarto do khan, depois deixaria Bayazid e seus homens fazerem o que bem entendessem, chegaria na ala norte e salvaria Azadeh, e se ela não estivesse lá, ou se estivesse ferida, então mataria, mataria o khan, os guardas, aqueles homens, todo mundo.
Ele estava possuído pelo seu plano.
— O seu nome não seria lembrado por mil anos por causa da sua ousadia? Xeque Bayazid, aquele que ousou humilhar e desafiar o khan de todos os Gorgons dentro do seu covil por uma questão de honra? Os menestréis não cantariam eternas canções sobre você, em volta das fogueiras de todos os curdos? Não é isto o que Saladino, o Curdo, teria feito?
Ele viu os olhos brilhando de uma forma diferente, viu Bayazid hesitar, com o silêncio crescendo, ouviu-o falar em voz baixa com o seu povo e então um dos homens riu e gritou alguma coisa e os outros se juntaram a ele e então, a uma só voz, eles berraram a sua aprovação.
Mãos ansiosas o soltaram. Homens brigavam pelo privilégio de participar do ataque. Os dedos de Erikki tremiam quando ele apertou o botão de arranque. O primeiro dos jatos explodiu e ganhou vida.
NO PALÁCIO DO KHAN: 6:35H. Hakim despertou violentamente. O seu guarda-costas, que estava perto da porta, levou um susto.
— O que foi, Alteza?
— Nada, nada, Ishtar, eu estava... eu estava sonhando. — Agora que estava bem acordado, Hakim tornou a deitar-se e espreguiçou-se devagar, ansioso pelo novo dia. — Traga-me café. Depois do meu banho, vou tomar café aqui e peça à minha irmã para vir para cá
— Sim, Alteza, imediatamente.
O guarda-costas saiu. Ele se espreguiçou de novo. A madrugada estava escura. O quarto, amplo e enfeitado, era frio e cheio de correntes de ar, mas era o quarto do khan. Na enorme lareira, o fogo crepitava, alimentado a noite inteira pelo guarda, e ninguém tinha permissão de entrar ali, exceto o guarda — que ele escolhera pessoalmente entre os 53 que havia no palácio, aguardando uma decisão sobre o seu futuro. Como saber em quais posso confiar, pensou, depois saiu da cama, agasalhando-se bem com o robe de brocado — um dos cinqüenta que encontrara no armário — ficou de frente para Meca e para o Corão, ajoelhou-se e fez a primeira oração do dia. Quando terminou, ficou lá, contemplando o antigo Corão, imenso, cravejado de pedras preciosas, escrito à mão e inestimável, o Corão do Gorgon Khan — o seu Corão. Há tanto o que agradecer a Deus, pensou, tanto o que aprender ainda, tanto o que fazer, mas o começo já foi maravilhoso.
Na véspera, pouco depois da meia-noite, diante de toda a família reunida, ele tirara o anel de ouro e esmeralda, símbolo do antigo khanato, do dedo indicador da mão direita do seu pai e o colocara no próprio dedo. Tivera que fazer força para o anel passar sobre a camada de gordura e que fechar o nariz para o fedor da morte que impregnava o quarto. Sua excitação tinha vencido a repulsa e agora ele era realmente khan. Depois, toda a família se ajoelhara e beijara-lhe a mão, jurando-lhe lealdade, Azadeh, orgulhosamente, em primeiro lugar, depois Aysha, assustada e tremendo, depois os outros, Najoud e Mahmud aparentemente servis, mas secretamente agradecendo a Deus pela morte do khan.