— Em você — respondeu, adorando-a, sentindo as preocupações desaparecerem diante de sua ternura. A sala estava quente, como todo o enorme apartamento, e suavemente iluminada, com as cortinas fechadas e muitas almofadas espalhadas em volta, o fogo crepitando alegremente. — Mas a verdade é que eu penso em você o tempo todo.
— Isso é maravilhoso — disse, batendo palmas.
— Não vou mais para Zagros amanhã, só depois de amanhã.
— Oh, isto é ainda mais maravilhoso! — Abraçou os joelhos de Tom e encostou a cabeça neles. — Maravilhoso!
— Você disse que teve um dia interessante? — perguntou Tom, acariciando-lhe os cabelos.
— Sim, ontem e hoje. Fui até a sua embaixada e apanhei o passaporte, exatamente como você mandou..
— Ótimo. Agora você é canadense.
— Não, meu amor, iraniana... você é canadense. Ouça, a melhor parte é que fui a Doshan Tappeh — disse com orgulho.
— Cristo — exclamou sem querer, pois ela não gostava que blasfemasse. — Desculpe, mas isso... isso foi loucura, está havendo combate lá, você é louca em se arriscar dessa maneira.
— Oh, eu não estive no meio do combate — retrucou alegremente, e se levantou e saiu depressa, dizendo: — Vou lhe mostrar. — Num instante estava de volta. Tinha vestido um chador cinzento que a cobria dos pés à cabeça, além da maior parte do rosto, e ele detestou aquilo. — Ah, senhor — disse em farsi, fazendo uma pirueta na frente dele. — Não precisa se preocupar comigo. Deus me protege, e também o Profeta, cujo Nome seja louvado. — Parou, ao ver sua expressão. — O que foi? — perguntou em inglês.
— Eu... eu nunca a tinha visto de chador. É... não combina com você.
— Oh, eu sei que é feio e eu nunca o usaria em casa, mas na rua me sinto melhor usando, Tommy. Todos aqueles olhares horríveis dos homens. É tempo de todas nós voltarmos a usá-lo, bem como o véu.
— E todos os direitos que vocês conquistaram, direito de votar, de tirar o véu, de ir onde quiser, de se casar com quem quiser, de não serem mais as escravas que costumavam ser? Se vocês concordarem com o chador, vão perder todo o resto. — Ele estava chocado.
— Talvez sim, talvez não, Tommy.
Estava satisfeita de que estivessem falando em inglês para que ela pudesse discutir um pouco, o que seria inimaginável se se tratasse de um marido iraniano. E estava muito feliz por ter escolhido se casar com este homem que, inacreditavelmente, permitia que tivesse suas próprias opiniões, e o que era ainda mais espantoso, permitia que as expressasse livremente. O vinho da liberdade sobe facilmente à cabeça, pensou, é muito perigoso, muito difícil para uma mulher bebê-lo — como o néctar do jardim do paraíso.
— Quando o Reza Xá tirou o véu dos nossos rostos — disse —, ele também deveria ter tirado a obsessão da mente dos homens. Você não vai ao mercado, Tommy, nem dirige um carro, não como uma mulher. Não faz idéia do que seja. Os homens nas ruas, no bazar, no banco, em toda parte. São todos iguais. Pode-se ver os mesmos pensamentos, a mesma obsessão, em todos eles. Pensamentos a meu respeito que só você devia ter. — Tirou o chador, arrumou-o sobre uma cadeira, e tornou a sentar-se a seus pés. — De hoje em diante, eu o usarei na rua, como minha mãe e a mãe dela o fizeram antes de mim, não por causa de Khomeini, que Deus o proteja, mas por sua causa, meu amado esposo.
Beijou-o de leve e sentou-se nos joelhos dele e Tom percebeu que estava decidido. A não ser que ele ordenasse o contrário. Mas aí haveria problemas em casa, pois era realmente um direito dela decidir sobre isso. Ela era iraniana, seu lar era iraniano, e seria sempre no Irã — isso fazia parte do seu acordo com o pai dela — então o problema seria iraniano e a solução iraniana: dias e dias de longos suspiros e olhares suplicantes, algumas lágrimas, pequenos favores abjetos, de escrava, soluços discretos à noite, nunca uma palavra ou um olhar de raiva para perturbar a paz de um marido, um pai ou um irmão. Lochart às vezes a achava difícil de entender.
Faça como quiser, mas nada de Doshan Tappeh — disse, acariciando-lhe os cabelos. Estes eram finos e sedosos e brilhavam como só na juventude O que houve lá?
— Oh, foi tão excitante. — E seu rosto iluminou-se. — Os Imortais, mesmo eles, a tropa de elite do xá, não conseguiram expulsar os fiéis. Houve tiros por toda parte. Eu estava em segurança, minha irmã Laleh estava comigo, além do meu primo Ali e da esposa dele. O primo Karim também estava lá. Ele se declarou a favor do Islã e da revolução, bem como vários outros oficiais, e ele nos disse onde e como encontrá-lo. Havia umas duzentas mulheres, todas de chador, e nós não paramos de entoar 'Deus é grande, Deus é grande', então alguns soldados se passaram para o nosso lado. Imortais! — Seus olhos se arregalaram. — Imagine, até os Imortais estão começando a enxergar a verdade!
Lochart ficou horrorizado com o risco que ela correra, indo até lá sem pedir ou contar a ele, mesmo estando acompanhada. Até então, a revolução e Khomeini pareciam não afetá-la, exceto no início, quando os problemas realmente começaram e ela ficara aterrorizada com a segurança do pai e dos parentes que eram comerciantes e banqueiros importantes, e bem conhecidos por suas ligações com a corte. Felizmente seu pai sossegara todas as preocupações deles ao cochichar para Lochart que seus irmãos e ele estavam secretamente apoiando Khomeini e a revolta contra o xá e que já vinham fazendo isso há anos. Mas agora, pensou, agora, se os Imortais estão cedendo e jovens oficiais de alto escalão como Karim estão apoiando abertamente a revolta, o derramamento de sangue será incontrolável.
— Quantos se passaram para o outro lado? — perguntou, tentando decidir o que fazer.
— Só três se juntaram a nós, mas Karim disse que isso é um bom começo e que qualquer dia Bakhtiar e os seus canalhas vão fugir como o xá.
— Ouça, Xarazade, o governo britânico e o canadense ordenaram hoje que todos os dependentes saíssem do Irã por algum tempo. Mac está mandando todo mundo para Al Shargaz até que as coisas esfriem um pouco.
— É sensato, sim, muito sensato.
— Amanhã vai chegar o 125. Vai levar Genny, Manuela, você e Azadeh amanhã, então arrume a...
— Oh, eu não vou partir, meu querido, não há necessidade. E por que Azadeh vai embora? Não há nenhum perigo para nós, papai certamente saberia se houvesse perigo. Você não precisa se preocupar... — Ela viu que o copo de vinho dele estava quase vazio, então levantou-se rapidamente, tornou a enchê-lo e voltou. — Eu estou perfeitamente segura.
— Mas acho que você estaria mais segura fora do Irã, por algum tempo.
— É maravilhoso você se preocupar comigo, meu querido, mas não há nenhum motivo para que eu vá, vou perguntar a papai amanhã, ou você pode... — Uma pequena acha de lenha caiu da lareira. Ele começou a se levantar mas ela já estava lá. — Deixe que eu vejo isso. Descanse, meu querido, você deve estar cansado. Talvez amanhã você tenha tempo para ir comigo ver papai. — Rapidamente, ajeitou o fogo. Seu chador estava numa cadeira próxima. Ela viu o olhar de Tom. A sombra de um sorriso passou por seus lábios.
— O que foi?
Em resposta, ela simplesmente sorriu de novo, apanhou o chador e atravessou a sala correndo com vivacidade em direção à cozinha.
Inquieto, Lochart ficou olhando o fogo, tentando pôr em ordem seus argumentos, sem querer impor-lhe nada. Mas eu o farei, se for obrigado. Meu Deus, tantos problemas. Charlie desaparecido, Kowiss numa confusão, Kyabi assassinado, e Xarazade no meio de um conflito! Ela é louca! Que absurdo se arriscar dessa maneira! Se eu a perdesse, morreria. Meu Deus, seja quem for, esteja onde estiver, proteja-a...
A sala era grande. No extremo oposto ficava a mesa e doze cadeiras. Geralmente usavam a sala à maneira iraniana, sentados no chão, com uma toalha aberta para os pratos, encostados em almofadas. Raramente usavam sapatos e nunca saltos que pudessem estragar os grossos tapetes. Havia cinco quartos, três banheiros, duas salas de estar — uma usada por eles, ou quando tinham companhia, a outra, muito menor, no outro extremo do apartamento, era, segundo o costume, para ela ficar quando ele tivesse que discutir negócios ou quando ela recebesse a visita da irmã, das amigas ou de outros parentes, para que pudessem conversar sem perturbá-lo. Em volta de Xarazade havia sempre movimento, a família estava sempre por perto, crianças, babás — exceto depois do pôr-do-sol, embora com freqüência parentes ou amigos se hospedassem lá.