— Não tem importância, — Lochart deixou o silêncio prolongar-se. O homem mais velho comeu sem se sentir embaraçado por estar comendo sozinho
Um pedaço de carneiro ficou preso em seu bigode e Lochart o observou fascinado, imaginando quanto tempo ainda demoraria, então Valik limpou a boca.
— Meus cumprimentos a Xarazade... seu cozinheiro é bem treinado. Vou dizer isso a meu primo predileto, Excelência Jared.
— Obrigado — Lochart esperou.
Mais uma vez o silêncio ficou suspenso entre eles. Valik tomou um pouco de chá.
— A licença para o 212 foi entregue?
— Até a hora que saímos não. — Lochart não estava preparado para aquela pergunta. — Sei que Mac mandou um mensageiro esperar. Poderia ligar para ele mas, infelizmente, nosso telefone está com defeito. Por quê?
— Os sócios gostariam que você se encarregasse do vôo.
— O capitão McIver designou o capitão Lane, supondo-se que haja uma licença.
— Será concedida. — Valik tornou a limpar a boca e serviu-se de mais chá. — Os sócios gostariam que você pilotasse. Estou certo que McIver não se importará.
— Sinto muito, mas tenho que voltar para Zagros, quero verificar se está tudo bem. — E contou em poucas palavras o que acontecera lá.
— Tenho certeza que Zagros pode esperar alguns dias. Tenho certeza que Jared ficaria contente que você achasse mais importante fazer o que os sócios pedem.
— Terei prazer em fazer qualquer coisa. O que há de tão importante para os sócios neste vôo, algumas peças sobressalentes, alguns riais? — perguntou Lochart, com a testa franzida.
— Todos os vôos são importantes. Os sócios se preocupam em fornecer o melhor serviço. Então, está tudo certo?
— Bem, em primeiro lugar, eu teria que resolver isso com Mac, em segundo, duvido que o 212 consiga a licença, em terceiro, de fato, eu preciso voltar para minha base.
— Tenho certeza de que Mac dará o seu consentimento. — E Valik deu o seu sorriso mais simpático. — Você terá licença para deixar o espaço aéreo de Teerã. — Ele se levantou. — Vou ver Mac agora e direi a ele que você concordou. Agradeça a Xarazade, e mais uma vez, mil desculpas por vir tão tarde, mas estamos numa época atribulada.
— Ainda quero saber o que há de tão importante a respeito de algumas peças sobressalentes e cem mil riais — disse Lochart, sem se mover de onde estava.
— Os sócios decidiram que é importante, e então meu querido amigo, sabendo que você estava aqui e conhecendo seu relacionamento com minha família, presumi, imediatamente, que você ficaria feliz em fazer isso, se eu, em pessoa, lhe pedisse. Somos da mesma família, não somos? Isso foi dito secamente, embora o sorriso permanecesse.
— Tenho prazer em fazer qualquer coisa para ajudar, mas...
— Ótimo, então está combinado. Obrigado. Não precisa me acompanhar até a porta. — Da porta, o general Valik se virou e olhou em volta intencionalmente. — Você é um homem de sorte, capitão. Eu o invejo.
Depois que Valik saiu, Lochart sentou-se ao lado do fogo que morria, olhando para as chamas. Hassan e uma empregada tiraram os pratos, disseram boa-noite, mas ele não escutou — nem ouviu Xarazade que foi até lá um pouco depois, olhou para ele e depois voltou silenciosamente para a cama, deixando-o em paz com seus pensamentos.
Lochart estava aborrecido. Sabia que Valik estava a par de que tudo que havia de valor no apartamento, além do próprio apartamento, que fora presente de casamento do pai de Xarazade. Jared Bakravan dera-lhe, de fato, todo o edifício — pelo menos a renda dos aluguéis. Poucos sabiam da discussão que tiveram:
— Aprecio muito sua generosidade, mas não posso aceitar tudo isso, senhor — dissera Lochart. — É impossível.
— Mas são coisas materiais, coisas sem importância.
— Sim, mas é demais. Sei que meu salário não é muito, mas podemos nos arranjar. De verdade.
— Sim, é claro. Mas por que o marido de minha filha não poderia viver confortavelmente? De que outra forma você poderá ficar tranqüilo para aprender os costumes iranianos e cumprir sua promessa? Eu lhe asseguro, meu filho, isso tem pouco valor para mim. Agora você faz parte da minha família. A família é a coisa mais importante no Irã. A família zela pela família.
— Sim, mas sou eu que tenho que zelar por ela... eu, não o senhor.
— É claro, e com a Ajuda de Deus, com o tempo, poderá sustentá-la da forma que ela está acostumada. Mas isso agora não é possível pois precisa sustentar sua ex-mulher e sua filha. O que eu quero é ajeitar as coisas de uma forma civilizada, do modo iraniano. Você prometeu viver como nós vivemos, não?
— Sim. Mas por favor, não posso aceitar tudo isso. Dê o que quiser para ela, não para mim. Prometo fazer o melhor que puder.
— Tenho certeza que sim. Mas enquanto isso, é um presente meu para você, não para ela. Isto torna possível dá-la a você.
— Dê a ela, não...
— É a Vontade de Deus que o homem seja o senhor da casa — dissera Jared Bakravan com rispidez. — Se a casa não for sua, então você não será o senhor. Devo insistir. Sou o chefe da família e Xarazade fará o que eu disser, e devo insistir por Xarazade, senão o casamento não poderá se realizar. Percebo o seu dilema ocidental, embora não o compreenda, meu filho. Mas aqui, os costumes iranianos é que mandam, e a família zela pela família...
Na ampla solidão da sala de estar, Lochart balançou a cabeça para si mesmo. Está certo, e eu escolhi Xarazade, aceitei, mas... mas aquele filho da mãe do Valik jogou tudo isso na minha cara e me fez sentir vergonha outra vez e eu o odeio por isso, odeio por não pagar por tudo isso, e sei que o único presente que posso dar a ela é a liberdade que, de outro modo, não teria e a minha vida, se for preciso. Pelo menos ela agora é canadense e não precisa ficar aqui.
Não se iluda, ela é iraniana e sempre será. Será que ela se sentiria em casa em Vancouver, com toda aquela chuva, sem família, sem amigos, sem nada do Irã? Sim, sim, acho que sim; por algum tempo eu compensaria todo o resto. Por algum tempo, é claro, não para sempre.
Era a primeira vez que se defrontava com o problema real que havia entre eles. O nosso Irã desapareceu para sempre, o velho, o do xá. Não importa que o novo talvez seja melhor. Ela vai se adaptar e eu também. Eu falo farsi e ela é minha mulher e Jared é poderoso. Se tivermos que partir temporariamente, vou compensá-la por esta separação temporária, quanto a isso não haverá problema. O futuro ainda é cor-de-rosa, eu a amo muito e Deus seja louvado por ela...
O fogo já estava quase apagado e ele sentiu o cheiro reconfortante de madeira queimada e, junto com ele, um traço do perfume dela. As almofadas ainda guardavam as marcas onde tinham deitado juntos e embora estivesse totalmente satisfeito e saciado, ainda ansiava por ela. Ela é realmente uma huri, um espírito do paraíso, pensou sonolento. Estou enfeitiçado por ela e é maravilhoso, não tenho nenhuma queixa, e se eu morresse hoje já saberia como é o paraíso. Ela é maravilhosa, Jared é maravilhoso, no devido tempo seus filhos serão maravilhosos e sua família...
Ah, família! A família zela pela família, esta é a lei, tenho que fazer o que Valik pediu, gostando ou não. Tenho que fazer, o pai dela deixou isso muito claro.
A última acha crepitou e, antes de morrer, acendeu por um instante.
— O que haverá de tão importante numas poucas peças e nuns poucos riais? — perguntou às chamas.
As chamas não responderam.
SEGUNDA-FEIRA
12 de fevereiro14
EM TABRIZ UM: 7:12H. Charlie Pettikin dormia um sono sobressaltado, encolhido sobre um colchão no chão, coberto apenas por uma manta, com as mãos amarradas para a frente. Acabava de amanhecer e estava muito frio. Os guardas não permitiram que ele levasse o aquecedor portátil e o prenderam na parte da cabana de Erikki Yokkonen que era usada, normalmente, como depósito. O gelo brilhava no interior das vidraças da pequena janela. A janela tinha barras pelo lado de fora. A neve cobria o parapeito.