Scot sorriu e não disse nada, respirando com facilidade, mas consciente da sua respiração. Acima de quatro mil metros, de acordo com o regulamento, os pilotos deveriam usar máscaras de oxigênio se fossem ficar lá em cima por mais de meia hora. Mas eles nunca carregavam nenhuma e, até agora, nenhum piloto tinha sentido qualquer outro desconforto além de uma dor de cabeça, embora levasse uma semana mais ou menos para a pessoa se acostumar a viver a dois mil e quinhentos metros de altura. Era mais duro para os trabalhadores de Bellissima.
As paradas deles em Bellissima costumavam ser muito curtas. Apenas se arrastavam até lá com uma carga de, no máximo, duas toneladas. Canos, bombas, diesel, guinchos, geradores, produtos químicos, comida, trailers, tanques, homens e lama — o nome genérico dado ao líquido que era bombeado para dentro do poço para remover resíduos, para manter a broca lubrificada, para controlar o óleo ou o gás, e sem o qual era impossível uma perfuração profunda. Depois saíam de lá, leves ou com uma carga completa de homens ou de equipamentos para serem reparados ou substituídos.
Nós não passamos de um caminhão de entregas, pensou Scot, seus olhos examinando o céu, os instrumentos e tudo em volta. Sim, mas que maravilha estar voando e não dirigindo. Embaixo, os penhascos estavam bem próximos, a linha das árvores ficara para trás há muito tempo. Eles ultrapassaram o último cume. Agora podiam ver o poço.
— Bellissima, aqui é Jean-Luc, estão me ouvindo?
A plataforma Bellissima era a mais alta da cordilheira, ficava exatamente 4.100 metros acima do nível do mar. A base estava encarapitada numa saliência, logo abaixo do topo. Do outro lado da saliência, a montanha descia dois mil metros, quase a prumo, até um vale de 16 mil quilômetros de largura por cinqüenta quilômetros de comprimento, um enorme talho na superfície da terra.
— Bellissima, aqui é Jean-Luc. Estão me ouvindo? Ainda nenhuma resposta. Jean-Luc mudou de canal.
— Zagros Três, está me ouvindo?
— Alto e claro, capitão — veio a resposta imediata do seu operador de rádio iraniano, Aliwari. — Excelência Nasiri está aqui ao meu lado.
— Espere nesta freqüência. A emergência é em Bellissima, mas não conseguimos nenhum contato pelo rádio. Vamos pousar.
— Roger. Esperando.
Como sempre acontecia em Bellissima, Scot ficou maravilhado com a monumental convulsão geológica que criara o vale. E, como todos que visitavam este poço, mais uma vez pensou na enormidade do risco, do esforço e do dinheiro necessários para encontrar o campo de petróleo, escolher o lugar, levantar a torre e perfurar milhares de metros para tornar os poços lucrativos. Mas eles o eram, extremamente lucrativos, assim como toda esta enorme área com seus vastos depósitos de óleo e gás, encurralados em cones de calcário, dois a três mil metros abaixo da superfície. E mais um enorme investimento e um enorme risco para ligar este campo ao oleoduto que cavalgava as montanhas Zagros, unindo as refinarias de Isfahan, no centro do Irã às de Abadan, no golfo — outro extraordinário feito de engenharia da velha Companhia de Petróleo Anglo-lraniana, agora nacionalizada e rebatizada de IranOil. "Roubada, Scot, meu rapaz, roubada é a palavra certa", seu pai dissera muitas vezes. Scot Gavallan sorriu consigo mesmo, pensando em seu pai, com um sentimento de afeto. Tenho muita sorte em tê-lo, pensou. Ainda sinto falta de mamãe, mas foi melhor que ela tivesse morrido. É terrível para uma mulher ativa e bonita se tornar um corpo impotente, paralítico, e com a mente intacta até o fim, e ela foi a melhor mãe que uma pessoa poderia desejar. Foi uma tragédia a morte dela, principalmente para papai. Mas estou feliz por ele ter se casado de novo, Maureen é um barato, papai é um barato, minha vida é ótima e o futuro cor-de-rosa. Ainda tenho muito tempo para voar, um bocado de garotas, e dentro de dois anos eu me caso: que tal Tess? Seu coração acelerou. É uma droga que Linbar seja tio dela e que ela seja a sua sobrinha favorita, mas por sorte não tenho nada a ver com ele, ela só tem dezoito anos, então ainda temos muito tempo..
— De que lado você vai pousar, mon vieux? — ouviu através dos fones
— Vou descer pelo lado oeste — disse, voltando à realidade.
— Ótimo. — Jean-Luc estava tentando ver alguma coisa. Não havia nenhum sinal de vida. O lugar estava todo coberto de neve, quase enterrado. Só o heliporto estava limpo. Rolos de fumaça saíam dos trailers. — Ah! Veja!
Viram a figura de um homem, todo agasalhado, em pé perto do heliporto e acenando para eles
— Quem é?
— Acho que é Pietro. — Scot concentrara-se no pouso. Naquela altitude e por causa da posição sobre a saliência, havia rajadas súbitas de vento, turbulências e redemoinhos, não se podia errar. Ele se aproximou por cima do abismo, com os redemoinhos fazendo-os balançar, depois corrigiu o aparelho com precisão e pousou.
— Ótimo. — Jean-Luc voltou sua atenção para o homem agasalhado que agora reconhecia como sendo Pietro Fieri, um dos chefes da plataforma, o segundo em importância depois do homem da companhia. Eles o viram fazer um gesto com a mão como se estivesse cortando a garganta, o sinal para desligar os motores, indicando que a emergência não exigia uma decolagem imediata. Jean-Luc fez sinal para o homem se aproximar da janela e a abriu. — Qual é o problema, Pietro? — gritou por sobre o barulho dos motores.
— Guineppa está doente — Pietro gritou em resposta. Mario Guineppa era o 'homem da companhia'. E Pietro bateu com a mão no lado esquerdo do peito. — Nós achamos que pode ser o coração. E isso não é tudo. Olhe lá! — Ele apontou para cima. Scot e Jean-Luc levantaram a cabeça para ver melhor mas não conseguiram ver o que o deixava tão agitado
Jean-Luc saltou. O frio o atingiu e ele apertou os olhos que se encheram de água por causa dos redemoinhos provocados pelos rotores, os óculos escuros não ajudando grande coisa. Então ele viu o problema e seu estômago deu um salto. A algumas centenas de metros próximo ao cume, e exatamente em cima do acampamento, havia um enorme bloco de neve e gelo.
— Madonna!
— Se isso se soltar, vai causar uma enorme avalanche por toda a encosta e talvez nos leve junto e a tudo o que existe no vale. — O rosto de Pietro estava azulado do frio. Ele era gordo e muito forte, tinha uma barba grisalha e seus olhos castanhos e perspicazes estavam apertados por causa do vento. — Guineppa quer conversar com você. Venha até o trailer dele, sim?
— E aquilo? — Jean-Luc fez sinal com o polegar para cima.
— Se descer, desceu — Pietro disse com uma risada, seus dentes muito brancos contrastando com a cor do seu casaco manchado de óleo. — Vamos!
— Afastou-se do helicóptero, agachado e saiu andando. — Vamos!
Jean-Luc analisou, inquieto, o bloco de gelo. Aquilo podia ficar lá por várias semanas ou cair a qualquer momento. Acima do cume o céu estava límpido, mas o calor que vinha do sol da tarde era muito fraco.
— Fique aqui, Scot, mantenha-o ligado — gritou, e então seguiu Pietro, com dificuldade, através da neve.
O trailer de dois cômodos de Mario Guineppa estava aquecido e desarrumado, havia mapas nas paredes, roupas manchadas de óleo, luvas e chapéus pendurados em cabides, além de toda a parafernália de quem trabalhava com petróleo espalhada pelo escritório/sala de estar. Ele estava no quarto, deitado na cama, completamente vestido a não ser pelas botas, um homem alto e grande de 45 anos, com um nariz imponente, geralmente corado e resistente, mas agora pálido, com os lábios estranhamente azulados. O chefe do outro turno, Enrico Banastasio, estava com ele — um homenzinho moreno, de olhos escuros e rosto fino.
— Ah, Jean-Luc! Que bom ver você — disse Guineppa, com uma voz cansada
— Eu digo o mesmo,,mon ami.
Muito preocupado, Jean-Luc abriu sua jaqueta de vôo e sentou-se ao lado da cama. Guineppa era o responsável por Bellissima há dois anos — doze horas de trabalho, doze de descanso, dois meses lá, dois de licença — conseguira três poços muito produtivos, com espaço para perfurar mais quatro. — Você vai para o hospital em Shiraz.