Ele estava abrigado da neve sob uma saliência da cabana, mas a umidade e o frio o atravessavam apesar de estar usando todas as roupas que possuía no mundo — camiseta, uma camisa grossa por cima, um casaco e uma calça comprados de segunda mão, um velho suéter e um antigo casacão do exército que pertencera a seu pai. Seus pés estavam dormentes.
— Seja como Deus quiser — disse em voz alta e se sentiu melhor. — Vou ser substituído logo e então vou comer. Meu Deus, os soldados vivem como verdadeiros paxás, fazem pelo menos duas refeições por dia, uma com arroz, imagine só, e são pagos toda semana... dinheiro de Satã, mas mesmo assim dinheiro. — Teve um acesso de tosse, com o peito chiando, trocou a carabina do exército americano para o outro ombro, encontrou a guimba de cigarro que estava guardando e acendeu-a.
Pelo Profeta, pensou, satisfeito, quem poderia imaginar que tomaríamos a base tão facilmente, com tão poucos dos nossos mortos e mandados para o paraíso antes que dominássemos os soldados no portão e entrássemos no campo — nossos irmãos na base bloqueando o caminho com caminhões, e outros ocupando os aviões e helicópteros para evitar a fuga dos traidores do xá. Fugindo das balas do inimigo, com o Nome de Deus nos lábios. "Juntem-se a nós, irmãos", nós gritamos, "juntem-se à revolução de Deus, ajudem-nos a fazer o trabalho de Deus! Venham para o paraíso... não vão para o inferno..."
O rapaz tremeu e começou a pronunciar as palavras impressas nele por uma dúzia de mulás, tirados do Corão e interpretadas: "... para viver lá para sempre com todos os pecadores e o povo amaldiçoado da Mão Esquerda, sem provar de nenhuma outra bebida a não ser água fervendo ou metal derretido e matéria em decomposição. E quando o fogo do inferno lhes tiver arrancado toda a pele, eles criarão peles novas de modo que seu sofrimento não cesse nunca..."
Fechou os olhos com a intensidade das suas orações: "Deixe-me morrer com um dos nomes de Deus nos meus lábios, para que eu possa ir diretamente para o jardim do paraíso com todo o povo da Mão Direita, para ficar lá para sempre, para nunca mais sentir fome, para nunca mais ver os irmãos e as irmãs das aldeias com suas barrigas inchadas, lamuriando-se até morrer, para não gritar mais no meio da noite por causa do horror da vida, mas viver no paraíso: para me deitar em almofadas de seda, vestido com roupas de seda verde, servido por jovens rosadas, carregando taças e copos transbordantes de vinho, e provando das frutas mais deliciosas e da carne das aves mais tenras. E a nós pertencerá a rapariga de olhos grandes e escuros, como pérolas escondidas na sua concha, sempre jovem, sempre virgem, no meio de árvores carregadas de frutos, repousando na sombra perto de um riacho, sem nunca envelhecer, sem..."
O golpe de rifle esmagou-lhe o nariz e amassou-lhe o crânio, cegando-o e privando-o para sempre da sua normalidade, mas sem matá-lo, antes que ele caísse no chão, inconsciente. Seu atacante era um soldado, da mesma idade que ele, e este homem apanhou rapidamente a carabina e usou-a para arrebentar a fechadura da porta e abri-la.
— Rápido — murmurou o soldado, suando de medo. Um instante depois, o general Valik pôs a cabeça para fora, cautelosamente. O homem agarrou-lhe o braço. — Vamos, depressa, pelo amor de Deus — sussurrou.
— Que Deus o abençoe... — disse Valik, com os dentes batendo, depois tornou a entrar e saiu com dois embrulhos grandes de dinheiro que o homem enfiou no uniforme de campanha, desaparecendo tão silenciosamente quanto tinha chegado. Valik hesitou um momento, com o coração disparado. Viu a carabina na neve e apanhou-a, carregou-a e pendurou-a no ombro, depois agarrou a maleta, agradecendo a Deus pelo fato dos revolucionários terem sido apressados demais na sua revista para descobrir o fundo falso da maleta antes de os terem enfiado ali para esperar a sentença dos tribunais.
— Sigam-me — sussurrou para sua família. — Mas em nome de Deus, não façam barulho. Sigam-me com cuidado. — Fechou bem o casaco e foi mostrando o caminho no meio da neve. Sua esposa, Annoush, seu filho de oito anos, Jalal, e sua filha Setarem, de seis, hesitavam na porta. Todos estavam usando roupas de esqui. Annoush tinha um casaco de vison por cima, e os guardas islâmicos tinham-na ridicularizado por causa disso, como sendo uma exibição pública de pecado. "Guarde-o com você", tinham dito com desprezo, "só isso já basta para condená-la!" Durante a noite ela tinha ficado satisfeita pelo seu calor, .encolhida no chão de terra da cabana sem aquecimento, enrolando as crianças com ele.
— Venham, meu queridos — murmurou, tentando disfarçar o próprio medo.
O corpo do sentinela bloqueava o caminho, ali deitado na neve, gemendo baixinho.
— Mamãe, por que ele dorme na neve? — cochichou a garotinha.
— Não ligue para isso, minha querida. Vamos depressa. Não façam nenhum barulho agora.
Silenciosamente, ela pulou por cima do corpo. A garotinha não conseguiu e teve que pisar nele, tropeçando e caindo na neve. Mas ela não gritou, apenas se levantou, ajudada pelo irmão. Juntos, de mãos dadas, foram avançando rapidamente.
Valik conduziu-os cautelosamente. Quando chegaram ao hangar onde o 212 ainda estava parado, ele respirou com mais facilidade.
Esta área ficava bem longe do campo principal, do outro lado da enorme pista. Depois de se certificar de que não havia nenhum guarda por perto, ele correu até o helicóptero e espiou o interior da cabine. Para seu grande alívio, não havia guardas dormindo lá dentro. Esperimentou a porta. Não estava trancada. Ele a abriu o mais silenciosamente possível e fez sinal para os outros. Também em silêncio, eles se juntaram a Valik. Ele os ajudou a subir e entrou em seguida, trancando a porta por dentro. Rapidamente, acomodou as crianças com alguns cobertores sob os assentos, recomendando-lhes que não deixassem ninguém perceber sua presença ali, o que quer que acontecesse. Então sentou-se ao lado da mulher, pôs um cobertor em volta dos ombros, pois estava com muito frio, e deu-lhe a mão. As lágrimas desciam pelo rosto dela.
— Tenha paciência, não chore. Não vai demorar muito — cochichou, confortando-a. — Não vamos ter que esperar muito. Insha'Allah.
— Insha'Allah — ela repetiu com a voz entrecortada —, mas o mundo inteiro enlouqueceu... fomos atirados numa cabana imunda como se fôssemos criminosos... o que vai acontecer conosco...
— Com a ajuda de Deus nós conseguiremos chegar até aqui, então por que não conseguimos chegar até o Kuwait?
Eles tinham chegado lá na véspera, pouco antes do meio-dia. Fora um vôo sem incidentes, com todas as estações de rádio silenciosas. Ele confiava no seu motorista, que estava com ele há 15 anos, e que tinha levado o carro de volta para Teerã, com ordens de não dizer a ninguém que eles "tinham ido para a casa deles no mar Cáspio".
— Nesta fuga, não podemos confiar em ninguém — dissera Valik para a esposa enquanto estavam esperando a chegada do helicóptero.
— É claro, mas deveríamos ter trazido Xarazade, isso teria ajudado a ela e a Tom Lochart e teria sido uma garantia de que ele nos levaria até o fim.
— Não, ela nunca teria partido, por que o faria? — respondera-lhe Valik. — Com ou sem Xarazade, não se pode confiar nele; ele é estrangeiro, não é um de nós.
— Teria sido mais sábio trazê-la.
— Não — dissera, sabendo o que teria que ser feito com Lochart.
Durante a viagem de Teerã para Isfahan ele se sentara na frente com Lochart. Tinham voado baixo, evitando cidades e aeroportos. Quando Lochart chamou a base militar de Isfahan, já eram esperados. A torre dera-lhes instruções de onde pousar, com ordens para não tornar a chamar e manter o rádio silencioso. O brigadeiro-do-ar Muhammad Seladi, tio de Valik, que tinha conseguido licença para que eles pousassem e reabastecessem o helicóptero, encontrou-os na pista. O brigadeiro cumprimentara-os sombriamente. Como estava quase na hora do almoço, dissera que eles deveriam comer na base antes de continuar.