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Desviei o olhar do mar para as ruas de Kuseben na esperança de que Ashe tivesse me seguido. A que ponto havia chegado! A vergonha me fez cair em mim e pude raciocinar. Suborno ou violência eram as minhas alternativas se eu fosse tratar com aquele pescador que ainda trabalhava no seu bar­co. Mas um motor com defeito nada iria resolver. Pensei em roubar, então. Mas os motores dos barcos de pesca ficam trancados. Poderia fazer um circuito provisório, colocar o motor para funcionar e manobrar o barco para fora do cais de amarração, das lâmpadas do cais e, então, fugir para Orgoreyn. Mas nunca havia manobrado um barco a motor; seria uma saída louca, desesperada. Remar, sabia remar! Já o fizera no lago de Kerm. E havia um barco a remo, amarrado entre duas lanchas. Mal pensei, agi. Disparei pelo cais, sob as lâmpadas acesas, pulei no barco, desamarrei-o e, instalan­do os remos, dirigi-me para as ondas encrespadas do mar, onde as luzes apenas se refletiam, ligeiramente, nas águas escuras. Quando já estava bem afastado, parei de remar para recolocar o tolete de um dos remos no lugar, pois ele não estava funcionando bem. Eu deveria remar um bocado, em­bora não tivesse esperanças de escapar, no dia seguinte, de alguma patrulha ou pescador orgota. Quando me curvei sobre os remos, uma terrível fraqueza me percorreu o corpo. Pensei que fosse perder a consciência, e me encolhi no banco. Era a náusea da covardia tomando conta de mim — não sabia que a covardia jazia tão forte no interior do meu ser. Ao erguer os olhos, vi duas figuras em pé, no fim do cais, como dois riscos negros, contra o brilho distante da iluminação. Percebi, então, que a minha paralisia não era provocada pelo terror, mas sim por uma arma silenciosa de longo alcance. Pude perceber que um deles portava uma espécie de espin­garda e, se já passasse da meia-noite, ele dispararia e me atingiria mortalmente. Mas a espingarda de caça produz um estampido forte e isto eu não ouvira. Era, sem dúvida, uma arma assônica. Seu campo de ação é de, aproximadamente, cem pés. Não sei bem o seu alcance mortífero, mas não es­tava longe dele, pois eu estava dobrado em dois, como uma criança em cólicas. Tinha muita dificuldade em respirar, o impacto me apanhara no peito. Dobrado sobre os remos, de­sesperado, não podia perder um segundo mais, pois eles na certa possuíam um barco rápido e viriam dar cabo de mim. A escuridão estava à minha frente e para ela remei. Remei quase sem forças, cuidando de não soltar as mãos dos remos, pois não tinha mais tato. Assim cheguei às águas agitadas do mar alto do golfo. Aí parei. Cada remada aumentava a dormência dos braços; meu coração funcionava mal e os pul­mões haviam esquecido de como absorver o ar. Tentei remar e não consegui. Colocar os remos no barco era também inútil. Quando a luz do holofote de um barco-patrulha deslizou. e me pôs em destaque, como um floco de neve sobre a fuligem, não pude mais desviar os olhos do ofuscamento. Eles desco­laram minhas mãos crispadas de sobre os remos, içaram-me do barco e me depositaram, como um peixe fisgado, no convés. Senti que me rodeavam, mas não compreendi bem o que diziam — exceto um, o comandante, pelo tom de sua voz: “A 6.a hora ainda não se extinguiu…” E respondendo a um outro: “E que tenho eu com isto?” Parecia disposto a me ajudar: “O rei o exilou… vou obedecer à ordem do rei; não faço por menos…”

Assim, desobedecendo às ordens dadas pelo rádio, pelos homens a serviço de Tibe, e contra os argumentos dos próprios companheiros que temiam um revide, aquele oficial da patrulha de Kuseben conduziu-me através do golfo de Charisune e deixou-me em terra, a salvo, no porto de Shelt, em Orgoreyn. Se ele fez isso por pura shifgrethor[7] como reação contra os capangas de Tibe que queriam matar um homem desarmado, ou por exclusiva bondade, não sei…Nusuth. “O admirável é inexplicável.”

Ergui-me quando percebi o contorno da nova terra re­cortado no horizonte, emergindo do nevoeiro matutino, e consegui andar um pouco, saindo do barco em direção à rua, nas imediações do cais. Mas logo caí de novo. Quando voltei do desmaio, estava no hospital comensal da 4 a Área Costeira de Charisune, na 24.a Comensalidade de Sennethny. Disso eu estava certo, pois estava gravado numa plaqueta, em orgota, na cabeceira da cama; havia, ainda, uma lâmpada de leito de hospital, um copo de metal na mesa-de-cabeceira, os man­tos das enfermeiras, as cobertas e a camisa de doente que eu usava. Um médico veio me ver.

“Por que resistiu ao dothe?”

“Não estava em dothe”, respondi, “estava no campo sônico.”

“Seus sintomas eram os de uma pessoa que havia resis­tido à fase de relaxamento do dothe.”

Ele era uma figura imponente e acabei por admitir que usara a força do dothe para conter a paralisia, enquanto re­mava, sem saber nitidamente o que fazia. De modo que, na­quela manhã, na fase dethangen — quando se deve ficar imóvel —, eu me levantara e quase acabara por me liquidar. Quando ficou tudo claro para ele, disse-me que poderia sair em um dia ou dois, e dirigiu-se para o leito próximo.

Atrás dele veio o inspetor. Atrás de cada pessoa em Orgoreyn vem o inspetor.

“Seu nome?”

Eu não lhe perguntara o dele; tenho que aprender a viver sem espírito como fazem em Orgoreyn — não me ofender, nem ofender inutilmente. Não lhe dei meu sobre­nome, que não interessava a ninguém ali.

“Therem Harth? Não me parece um nome orgota. De que comensalidade é?”

“Karhide.”

“Não pertence a Orgoreyn. Onde estão seus documen­tos de identificação e seus papéis de entrada?”

“Onde estariam?”, pensei.

Eu tinha ficado ao léu pelas ruas de Shelt antes de terem me levado para o hospital, onde chegara sem papéis, pertences, roupas ou dinheiro. Quando soube disto, desatei a rir de pura raiva — no fundo não era zanga. O inspetor se ofendeu com o meu riso.

“Não está compreendendo que é um indigente e um estranho sem identidade? Como pretende voltar a Karhide?”

“Num caixão.”

“O senhor está dando respostas inadequadas a pergun­tas oficiais. Se não tem intenção de voltar a seu próprio país, terá que ser enviado a uma fazenda comunal onde há lugar para criminosos vulgares, estranhos e pessoas sem identi­dade. Não há outro lugar para indigentes e subversivos em Orgoreyn. É melhor declarar que tem a intenção de voltar a Karhide dentro de três dias ou serei…”

“Estou proscrito de Karhide.”

O médico, que já havia prestado atenção ao meu nome, voltou-se, puxou o inspetor para um canto e falou-lhe qualquer coisa em voz baixa. O inspetor ficou amargo como cerveja de má qualidade e quando voltou falou comigo lentamente, silabando cada palavra:

“Bem, calculo que vai declarar-me sua intenção de pedir um formulário de permissão para tornar-se residente permanente da grande comensalidade de Orgoreyn. E espera obter um emprego útil como membro da comensalidade ou cidadania?”

“Naturalmente”, respondi. A graça tinha ido embora com aquela palavra “permanente”, uma palavra macabra, se é que há outra pior.

Após cinco dias, concederam-me residência permanente, como membro da cidadania de Mishnory (que eu tinha solicitado), e me foram dados papéis de identificação temporários para a viagem por esta cidade.

Eu teria vivido faminto se o velho médico não tivesse me retido no hospital. Ele gostava de ter um primeiro-ministro de Karhide na sua enfermaria, e o primeiro-ministro era grato por isto.

Fui para Mishnory como carregador, numa caravana, levando peixe fresco de Shelt. Uma viagem rápida e cheia de odores que terminou no mercado central de Mishnory meridional, onde logo achei trabalho nos frigoríficos. No verão sempre há trabalho nesses lugares, com a descarga, empacotamento e armazenamento desse artigo tão perecível. Eu lidava, de preferência, com peixes, e me alojei numa ilha perto do mercado com meus companheiros de trabalho. Era chamada a Ilha do Peixe e fedia como nós. Mas eu gostava do trabalho que me mantinha a maior parte do dia em arma­zéns refrigerados. Mishnory, no verão, é um forno — o rio ferve, os homens suam. No mês de Ockre houve dez dias e dez noites em que a temperatura nunca foi abaixo de ses­senta graus, e um dia chegou a oitenta e oito graus. Tendo que sair do meu refúgio frio para aquela fornalha fumegante, no fim do dia andava um par de milhas até as margens do Kunderer, onde há árvores e pode-se ver o grande rio, em­bora não se possa descer até ele. Perambulava até tarde e voltava, enfim, à Ilha do Peixe, através da noite abafada, as­fixiante. Nesta parte de Mishnory as lâmpadas eram freqüen­temente quebradas para atos íntimos no escuro das ruas. Mas os carros dos inspetores estavam sempre espionando e acen­dendo os faróis nestas ruas recolhidas, tirando dos pobres seu único direito privado, a noite. A nova lei de registro de estrangeiros promulgada no mês de Kus, como uma jogada no tabuleiro de xadrez com Karhide, invalidou meu registro e perdi meu trabalho; passei, então, meio mês esperando nas ante-salas de um número infinito de inspetores.

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7

Honra pessoal. (N. do T.)