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— É por causa do medo que me recuso a patrocinar agora sua causa junto ao rei. Não, não temo por mim mesmo, Sr. Ai. Não estou agindo patrioticamente. Afinal, há outras nações em Gethen.

Não tinha idéia de aonde ele queria chegar, mas estava certo de que o que ele dizia era exatamente o que pensava.

Entre todas as almas obscuras, enigmáticas e bloquea­das que eu encontrara naquela cidade árida, a sua era a mais sombria. Não iria entrar no seu jogo intrincado. Não res­pondi. Logo a seguir, continuou cautelosamente:

— Se eu o compreendi, o Conselho Ecumênico é essencialmente dedicado aos interesses da humanidade em geral. Agora, os orgotas, por exemplo, têm experiência em subordinar os interesses locais aos interesses gerais, enquanto Karhide não o faz absolutamente. E os comensais de Orgoreyn são na maioria homens sãos, talvez pouco inteligentes, enquanto o rei de Karhide não é apenas insano como tam­bém imbecil.

Estava claro que Estraven não tinha nenhuma lealdade. Respondi com um certo desprezo:

— Deve ser difícil, então, servir ao rei, seéeste o caso.

— Não estou bem certo se algum dia servi ao rei — disse o primeiro-ministro. — Ou se realmente pretendia servir-lhe. Não sou empregado de ninguém. O homem deve ser fiel à sua própria sombra.

O gongo da Torre Remny batia a 6.a hora — meia- noite — e então aproveitei para desculpar-me e sair.

Quando vestia o sobretudo nohall de entrada, ele disse:

— Perdi a minha oportunidade agora, pois creio que você está deixando Erhenrang…

Por que ele supunha isto?

— …mas confio que dia virá em que eu possa lhe lazer perguntas novamente. Há tanta coisa que desejo saber! Por exemplo, sobre a leitura da mente, você mal começou a me explicar sobre isto.

Sua curiosidade parecia perfeitamente genuína. Ele ti­nha a audácia dos poderosos. Suas promessas de ajuda tinham me parecido sinceras, também. Respondi que sim, naturalmente, quando ele quisesse, e isto foi o fim da noite. Con­duziu-me através do jardim, onde caía uma neve fina sob a lua enorme, mas embaçada. Estremeci de frio quando saí­mos, pois estava abaixo de zero, e ele acrescentou com uma surpresa polida:

— Está com frio?!

Para ele, naturalmente, aquela era uma noite prima­veril. Sentia-me cansado e abatido. Respondi-lhe:

— Tenho sentido frio desde que vim para este mundo.

— Como é que você chama este mundo, na sua língua?

— Gethen.

— Você não tem um nome equivalente, de vocês…?

— Temos; o primeiro investigador o batizou. Cha­mou-o planeta Inverno.

Tínhamos parado na porta do jardim. Fora, os tetos e a silhueta do palácio pesavam, sombriamente, contra a neve, recortados, aqui e ali, por janelas estreitas como seteiras, fracamente iluminadas por dentro.

Sob o arco estreito da entrada, olhei para cima; queria ver se a chave também estava cimentada com ossos e sangue.

Estraven despediu-se e entrou. Ele nunca era indelicado em seus cumprimentos ou despedidas.

Atravessei as aléias silenciosas do palácio, minhas botas chiando ao esmagar a fina neve enluarada, e me dirigi para meus alojamentos, através das ruas soturnas da cidade. Estava com frio, sem confiança, e, sobretudo, perturbado pela perfídia, solidão e medo.

II

Dentro da nevasca — A terra dos suicidas

Lenda de uma coleção de contos folclóricos do norte de Karhide, gravada e arquivada no Colégio dos Historiadores, em Erhenrang. Narrador desconhecido. Gravação datada do reinado de Argaven VIII.

Há duzentos anos, no lar de Shath, fronteira do Pering Storm, havia dois irmãos que se juraram kemmering. Na­quela época como irmãos sangüíneos, poderiam manter-se cm kemmer até o momento em que um deles tivesse um filho, após o quê, deveriam separar-se. Assim, não era permi­tido manter a ligação por toda a vida. Até então, eles o fizeram. Quando a criança foi concebida, o Lorde de Shath ordenou-lhes quebrar o voto e que nunca mais se encontras­sem. Ao receber esta ordem, um deles, o que gerara a criança, desesperado, sem ouvir conselhos ou aceitar ajuda, suicidou-se por envenenamento. Então o povo de Shath amoti­nou-se contra o irmão e expulsou-o de lá e dos domínios, lançando sobre ele a culpa e a vergonha do suicídio. E desde que seu próprio senhor o exilara e esta atitude era conhecida de todos, ninguém queria recebê-lo. Após três dias de hospedagem obrigatória, ele foi expulso como um fora-da-lei. Assim, andou de casa em casa até que, vendo que não havia Unidade na sua própria terra e que seu crime não seria perdoado, ele falou: “Não sou mais ninguém perante os ho­mens Ninguém me vê. Falo e não me ouvem. Bato e não sou recebido. Não há lugar na lareira para mim, nem comida na mesa ou leito para repousar. Mas ainda tenho um nome: Getheren é meu nome. Este nome deposito aqui, na vossa casa, entre vós, como uma maldição; com ele fica a minha vergonha. Ficai com ambos porque, agora, parto em busca da minha morte”.

Alguns homens avançaram contra ele, aos gritos e em agitação, pretendendo matá-lo, pois assassinato é sombra menor sobre uma casa em que há suicídio[2]. Mas ele fugiu correndo em direção aos Gelos Eternos, não deixando que o alcançassem. Os perseguidores retornaram a Shath e desistiram. Getheren, que relutava em acreditar no que acontecera, porque era inexperiente e não abrigava dureza em seu cora­ção, prosseguiu e após dois dias de jornada chegou às geleiras de Pering[3].

Havia caminhado em direção aos gelos do norte. Não havia alimento nem abrigo, a não ser o seu casaco. Nas ge­leiras nada cresce e não há animais. Era o mês de susmy e as primeiras nevascas estavam caindo, dia e noite. Ele cami­nhou só, no meio da tempestade. No segundo dia, sentiu-se enfraquecer; na segunda noite teve que dormir um pouco; na terceira manhã, ao levantar, sentiu as mãos enregeladas e não conseguiu movimentá-las para desamarrar as botas. Seus pés também estavam duros. Começou a engatinhar apoiado nos joelhos e cotovelos, sem direção, pois não im­portava onde morresse; tanto fazia um lugar ou outro, mas, de qualquer maneira, ele sentia que devia ir para o norte.

Depois de um certo tempo a neve cessou de cair e o vento de soprar. O sol brilhou. Ele não podia ver nada, pois a pele do seu capuz lhe caía sobre os olhos. Não sentindo mais frio nas pernas, nos braços e no rosto, pensou que o frio o havia congelado. Entretanto, ainda podia se mover. A neve que recobria as geleiras lhe pareceu estranha, como se fosse um capim branco que crescia no gelo. Quando o tocava, dobrava e se erguia como se fosse grama comum.

Parou de engatinhar e sentou-se, empurrando o capuz para poder ver melhor os gramados brancos de neve bri­lhante que se lhe estendiam pela frente. Havia moitas de árvores de folhagem branca; o sol brilhava, o ar estava parado; tudo era branco ao redor. Getheren tirou as luvas e olhou as mãos. Estavam, também, da cor da neve. A ulce­ração do frio havia desaparecido, os dedos se articulavam e já conseguia manter-se de pé. Não sentia mais dor, fome nem frio. Avistou, ao longe, na direção norte, uma torre branca destacar-se do gelo, semelhante à torre do domínio. E deste longínquo local, de repente, surgiu uma figura que caminhou para ele. Ao aproximar-se, Getheren percebeu que estava desnudo e seus cabelos e pele eram inteiramente alvos. Chegando ao alcance de sua voz, Getheren perguntou:

— Quem é você?!

A branca figura respondeu:

— Sou seu irmão e kemmering: Hode.

Hode era o nome do irmão que se suicidara. Getheren reconheceu-o, então, em corpo e fisionomia. Mas ele não possuía vida dentro de seu corpo e sua voz soava como gelo ao partir-se. Getheren voltou a indagar:

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2

Sua transgressão ao código que controlava o incesto tornou-se um crime porque foi vista como a causa do suicídio do irmão.

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3

As geleiras de Pering são um lençol glacial que cobre a parte extre­ma setentrional de Karhide. No inverno, quando a baía de Guhen gela, fica ligada às geleiras de Gobrin, em Orgoreyn.