Kilimanjaro. Kaldor não era homem que gostasse de se gabar, mas duvidava que algum outro homem houvesse lido tantos livros antigos e sobre tantos assuntos. Também tinha recebido vários terabites de implante de memória, e embora informação armazenada deste modo não fosse realmente conhecimento, tornava-se disponível caso se soubesse os códigos de acesso. Era um pouco cedo para fazer tal esforço, e duvidava que o assunto fosse particularmente importante. Entretanto, havia aprendido a não subestimar os sonhos. O velho Sigmund Freud tinha marcado alguns pontos há dois mil anos. E afinal ele não seria mesmo capaz de dormir de novo… Fechou os olhos, disparou o comando BUSCA, e esperou. Embora isto fosse pura imaginação, e o processo acontecesse num nível inteiramente inconsciente, ele podia imaginar miríades de impulsos tremulando nas profundezas de seu cérebro. Agora alguma coisa estava acontecendo aos fosfenos que dançam interminavelmente em seus padrões aleatórios, na retina de um olho mantido apertadamente fechado. Uma janela escura havia aparecido magicamente na fraca luminescência do caos, letras iam se formando, e então lá estava: KILIMANJARO: Montanha vulcânica, África. Altitude, 5,9 km. Local do primeiro Elevador Espacial, Terminal Terra. „Muito bem! E o que significava isto?” Deixou sua mente jogar com a informação escassa. Alguma coisa relativa a um outro vulcão, Krakan, que recentemente tinha freqüentado bastante os seus pensamentos? Isto parecia um tanto exagerado, e ele não precisava de nenhuma advertência quanto à possibilidade de que aquele Krakan ou seu turbulento filho entrassem em erupção novamente. O primeiro elevador espacial? Isto era de fato história antiga, marcando o próprio início da colonização planetária, ao virtualmente fornecer à humanidade o livre acesso ao Sistema Solar. E eles estavam empregando a mesma tecnologia aqui, usando cabos de material super forte para erguer grandes blocos de gelo até a Magalhães, enquanto a nave flutuava numa órbita estacionaria acima do Equador. E, no entanto, isto também estava bem distante daquela montanha africana. A conexão era muito remota, e a resposta, Kaldor tinha certeza, devia ser alguma outra coisa. A abordagem direta havia fracassado. O único modo de encontrar o elo, se é que iria fazê-lo, seria deixar por conta do tempo, do acaso e dos misteriosos mecanismos da mente inconsciente.
Seria melhor esquecer o Kilimanjaro, até que ele escolhesse uma ocasião auspiciosa para entrar em erupção em seu cérebro.
37. IN VINO VERITAS
Depois de Mirissa, Kumar era o visitante de quem Loren mais gostava e o mais freqüente. A despeito de seu apelido, ele lembrava a Loren mais um cão fiel, ou uma mascote amistosa, do que um leão. Havia uma dúzia de cães muito bem tratados em Tarna e algum dia eles viveriam de novo também em Sagan 2, retomando sua longa amizade com o homem. Loren sabia agora o risco que o rapaz correra naquele mar agitado. Fora bom para ambos que Kumar nunca deixasse a praia sem uma faca de mergulhador presa à perna. Ainda assim, ele passara mais de dez minutos embaixo d’água, serrando o cabo que prendia Loren. A tripulação do Calypso já estava certa de que ambos haviam morrido. A despeito do laço que agora os unia, Loren achava difícil ficar muito tempo conversando com Kumar. Afinal, só existe um número limitado de maneiras de se dizer „obrigado por salvar minha vida”, e suas formações eram tão diversas que eles tinham muito poucas referências em comum. Se falasse com Kumar a respeito da Terra, ou da nave, teria de explicar tudo em detalhes tão minuciosos que logo perceberia estar perdendo o seu tempo. Ao contrário da irmã, Kumar vivia no mundo da experiência imediata, somente o aqui e agora de Thalassa eram importantes para ele. „Como eu o invejo!”, comentara Kaldor certa vez. „Ele é uma criatura do hoje, não assombrada pelo passado nem temerosa do futuro!” Loren estava a ponto de pegar no sono, no que ele esperava ser sua última noite na clínica, quando Kumar chegou, trazendo um garrafão que ergueu em triunfo.
— Adivinha.
— Não tenho idéia — disse Loren, sem muita sinceridade.
— O primeiro vinho da temporada, de Krakan. Eles dizem que vai ser um ano muito bom.
— Como sabe disso? — Nossa família tem uma vinha há mais de cem anos. Os produtos Leão são os mais famosos do mundo. Kumar procurou até achar dois copos e despejou doses generosas. Loren provou cautelosamente, era um pouco doce demais para o seu gosto, mas muito, muito suave.
— Como vocês o chamam? — perguntou ele.
— Krakan Especial.
— Será que devo arriscar, já que Krakan quase me matou uma vez? — Não vai lhe dar nem mesmo uma dor de cabeça. Loren tomou um gole mais longo e num tempo surpreendentemente curto o copo estava vazio. Em outro tempo ainda mais curto estava cheio de novo. Parecia uma forma excelente de passar sua última noite no hospital e Loren sentiu sua gratidão natural em relação a Kumar estender-se para o mundo inteiro. Mesmo uma das visitas da prefeita teria sido bem-vinda agora.
— A propósito, como está o Brant? Não o vejo há uma semana.
— Ainda na Ilha do Norte, cuidando dos reparos de seu barco e falando com biólogos marinhos. Todo mundo está um bocado excitado quanto aos scorps. Mas ninguém é capaz de decidir o que fazer com eles. Se é que vão fazer alguma coisa.
— Sabe, eu me sinto do mesmo modo quanto a Brant. Kumar riu.
— Não se preocupe. Ele tem uma garota na Ilha do Norte.
— Oh, e Mirissa sabe? — É claro.
— E ela não se importa? — Por que deveria? Brant a ama e sempre volta. Loren processou esta informação de modo um tanto lento. Ocorreu-lhe tratar-se de uma variável nova numa equação já complexa. Será que Mirissa teria outros amantes? Desejava realmente saber? Deveria perguntar? — De qualquer modo — continuou Kumar enquanto enchia de novo ambos os copos —, tudo o que realmente importa é que seus mapas de genes foram aprovados e eles foram registrados para ter um filho. Quando ele nascer será diferente. Então eles só precisarão um do outro. Não é a mesma coisa na Terra? — Algumas vezes — disse Loren. „Então Kumar não sabe, o segredo ainda permanece entre nós dois.”
„Pelo menos eu vou ver meu filho” — pensou Loren —, „ainda que seja por alguns meses. E então…” Para seu horror ele sentiu as lágrimas escorrendo em sua face. Quando é que tinha chorado pela última vez? Há duzentos anos, olhando para a Terra em chamas…
— O que foi? — perguntou Kumar.
— Está pensando em sua
esposa? — Sua preocupação era tão genuína que Loren achou impossível ofender-se com sua falta de tato ou com a referência a um assunto que por um acordo mútuo era raramente mencionado, já que nada tinha a ver com o aqui e o agora. Duzentos anos atrás, na Terra, ou trezentos anos no futuro, em Sagan 2, estavam por demais distantes de Thalassa, além do alcance de suas emoções, que àquela hora se encontravam bem confusas.
— Não, Kumar, eu não estava pensando em minha esposa.
— Irá… Mirissa? algum dia… falar com ela… a respeito de — Talvez sim, talvez não. Eu realmente não sei. Sinto-me muito sonolento. Será que nós bebemos a garrafa inteira? Kumar? Kumar! A enfermeira veio durante a noite e, contendo risadas, arrumou as cobertas de modo que não caíssem. Loren acordou primeiro. reconhecimento, ele começou a rir. Depois do choque inicial de — Qual foi a graça? — perguntou Kumar, saindo um tanto sonado da cama.
— Se você realmente quer saber, eu me perguntava se Mirissa ficaria com ciúmes. Kumar sorriu sem graça.
— Eu posso estar um tanto bêbado — disse ele —, mas tenho certeza de que não aconteceu nada.