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– Sento-me muito quietinha no meu canto e lá vou para o Norte – disse Jinny. – O comboio faz muito barulho, mas é tão suave que esbate as vedações, aumenta o tamanho das encostas. Passamos por inúmeros sinais luminosos; fazemos a terra abanar ligeiramente de um lado para o outro. A distância concentra-se para todo o sempre num único ponto; e estamos condenados para todo o sempre a fendê-la, a obrigá-la a se distanciar. Os postes do telégrafo não param de nos surgir pela frente; abate-se um, eleva-se outro. Agora, rugimos e precipitamo-nos num túnel. Um cavalheiro levanta a janela. Vejo bolhas no vidro brilhante onde o túnel se reflecte. Vejo-o baixar o jornal. Sorri para o meu reflexo no túnel. Por sua livre e espontânea vontade, o meu corpo endireita-se ao sentir o seu olhar. O meu corpo vive uma vida que é só dele. Agora, o vidro negro da janela voltou a ser verde. Estamos fora do túnel. Ele lê o jornal. Mas já tocamos a aprovação dos nossos corpos. Lá fora existe uma sociedade de corpos, e o meu já lhe pertence; o meu já chegou à sala onde estão as cadeiras douradas. Olha, tudo dança, as janelas das villas e as cortinas que as enfeitam; e os homens estão sentados nas vedações dos campos de milho, com os seus lenços azuis atados ao pescoço; estão tão conscientes como eu de todo este êxtase e calor. Um deles acena à nossa passagem. Nos jardins destas villas existem caramanchões e pavilhões, e jovens em mangas de camisa a podar as roseiras. Um homem a cavalo vai galopando pelo prado. O animal dá um salto quando passamos. E o cavaleiro vira-se para nos olhar. Voltamos a nos encontrar no meio da escuridão. Recosto-me; entrego-me ao êxtase; imagino que no fundo do túnel entrarei num salão repleto de cadeiras, numa das quais me sentarei, sob os olhares de admiração de todos, com o vestido muito bem arranjado à minha volta. Mas aterro, quando levanto a cabeça encontro os olhos de uma mulher azeda, que suspeita que me deixo levar pelo êxtase. Com alguma impertinência, fecho o corpo bem à sua frente, como se de um guarda-sol se tratasse. O meu corpo abre-se e fecha-se quando quero. A vida está a começar. Entro agora nos segredos que esta para mim reservou.

– Estamos no primeiro dia das férias grandes – disse Rhoda. – E agora, à medida que o comboio passa por estas rochas vermelhas, por este mar azul, o trimestre, agora que chegou ao fim, ganha uma determinada forma atrás de mim. Vejo-lhe a cor. Junho foi branco. Vejo os campos repletos de margaridas brancas, vestidos brancos, e campos de tênis, cujos limites estão traçados a branco. Seguiu-se então uma tempestade muito forte. Certa noite, vi uma estrela cavalgar as nuvens e disse-lhe: “Consome-me!”. Estava-se em pleno Verão, depois da festa ao ar livre e da humilhação por que tive de passar. O vento e a tempestade deram cor ao mês de Julho. É sensivelmente a meio que, horrível, cadavérica, se deve posicionar a poça cinzenta no pátio, quando, de envelope na mão, me fizeram transportar uma mensagem. Aproximei-me da poça. Não a consegui atravessar. A noção de identidade abandonou-me. “Nada somos”, disse, depois do que caí. Fui arrastada como uma pena, transportaram-me através de túneis. Então, com muita cautela, dei um passo em frente. Encostei a mão a uma parede de tijolo. Foi a muito custo que voltei, recolhendo-me de novo no meu corpo, por cima do espaço cinzento e cadavérico da poça. Esta é então a vida com a qual estou comprometida.

E é assim que deixo para trás o trimestre do Verão. Através de choques intermitentes, rápidos como os saltos de um tigre, a vida emerge do mar, tecendo a sua crista escura. É com isto que estamos comprometidos; é a isto que estamos ligados, como corpos a cavalos selvagens. Contudo, inventamos engenhos destinados a encher as rochas e a disfarçar as fendas. Cá está o revisor. Aqui, estão dois homens; três mulheres; um gato dentro de um cesto; eu mesma, o cotovelo apoiado à calha da janela – isto é o aqui e agora. E lá vamos nós avançando através destas cearas douradas. As mondadeiras surpreendem-se por ficarem para trás. O comboio faz agora muito barulho e respira penosamente, pois vamos a subir, a subir cada vez mais. Acabamos por chegar ao cimo da charneca. Aqui, só vivem umas quantas ovelhas bravas, uns quantos pôneis felpudos; apesar disso, temos todos os confortos: mesas onde poisar os jornais; espaços destinados a segurar os copos. Levamos todas estas coisas connosco para o cimo da charneca. Estamos agora no ponto mais alto. O silêncio fecha-se atrás de nós. Se olhar por cima daquela cabeça careca, poderei ver o silêncio fechar-se e as sombras das nuvens perseguindo-se umas às outras ao longo da charneca vazia; o silêncio fecha-se atrás da nossa breve passagem. Chamo a isto o momento presente; este é o primeiro dia das férias grandes. Isto é apenas uma parte do monstro a que estamos ligados.

– Já saímos – disse Louis. – Estou agora em suspensão, sem estar seguro a coisa alguma. Estamos sem estar. Estamos a atravessar a Inglaterra de comboio. A Inglaterra vai passando através da janela, transformando-se de colina em bosque, em rios e salgueiros, e tudo apenas para voltar a ser cidade. E eu não tenho qualquer ponto concreto para onde possa ir. O Bernard e o Neville, o Percival, o Archie, o Larpent e o Baker, todos vão para Oxford ou Cambridge, para Edimburgo, Roma, Paris, Berlim, ou para qualquer universidade americana. Eu limito-me a avançar de forma vaga, destinado a fazer dinheiro de forma vaga. É por isso que uma sombra dolorosa, um sotaque familiar, poisa nestas sedas douradas, nestes campos de papoulas vermelhas, nestas espigas de trigo que nunca ultrapassam o limite, mantendo-se sempre dentro da vedação. Este é o primeiro dia de uma nova vida, mais um dos raios da roda que se eleva. Contudo, o meu corpo é tão errante como a sombra de uma ave. Deveria ser tão efêmero como uma sombra no pasto, ora desmaiando ora escurecendo, acabando por morrer no ponto onde encontra o bosque, e assim seria se não fizesse um enorme esforço mental para que as coisas não se passassem desta forma; obrigo-me a registrar o momento presente, quanto mais não seja no verso de uma poesia que nunca será escrita; a anotar esta pequena marca da longa história que começou no Egipto, no tempo dos faraós, quando mulheres levavam ânforas vermelhas para o Nilo. Tenho a sensação de que já vivi milhares de anos. Mas, se fechar os olhos, se não conseguir descobrir o ponto de encontro entre o passado e o presente, que estou sentado numa carruagem de terceira classe repleta de rapazes que vão passar férias a casa, a história da humanidade ficará despojada da imagem de um determinado momento. O seu olho, que deveria ver através de mim, fecha-se (isto se a cobardia ou o descuido me fizerem adormecer, enterrando-me no passado, na escuridão; ou o condescender, tal como o Bernard faz, contando histórias; ou gabando-me, tal como se gabam o Percival, o Archie, o John, o Walter, o Lathom, o Roper e o Smith), os nomes são sempre os mesmos, são os nomes dos fanfarrões. Estão-se todos a gabar, estão todos a falar, todos menos o Neville, que de vez em quando deixa o olhar escorregar por um dos cantos do livro francês que está a ler. E assim continuará a se esgueirar, penetrando em aposentos iluminados pela luz da lareira e onde se vêem muitas poltronas, tendo como companhia um amigo e muitos livros. Enquanto isso, estarei sentado num escritório, por detrás de um balcão. Acabarei por me tornar amargo e troçar deles. Invejarei o modo como seguir as suas tradições, escudando-se na sombra dos velhos teixos, enquanto eu terei de me misturar com funcionários públicos e gente de baixa condição, palmilhando as pedras da calçada.