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Louis, o habitante do sótão; Rhoda, a ninfa da fonte sempre úmida; ambos contradiziam tudo o que então considerava positivo; ambos me transmitiam a outra face daquilo que me parecia tão evidente (o facto de nos casarmos, de nos tornarmos domesticados); e era por isso que os amava, lamentava e invejava profundamente o facto de serem tão diferentes de mim. Tive em tempos um biógrafo. O indivíduo já morreu há muito, mas se ainda seguisse os meus passos com a mesma intensidade lisonjeira, comentaria da seguinte maneira o que então aconteceu: “Por esta altura, Bernard contraiu matrimónio e comprou casa... Os amigos constatavam um aumento da sua necessidade de estar em casa... O nascimento dos filhos explicou a vontade por ele demonstrada em aumentar os seus rendimentos”. Estamos em presença daquilo a que se chama estilo biográfico, o qual nada mais é do que juntar estilhaços de coisas que nada têm a ver umas com as outras. Ao fim e ao cabo, não podemos encontrar defeitos neste tipo de estilo se começamos as cartas com “Caro Senhor”, e as terminamos com “Atenciosamente”; não podemos desprezar estas frases dispostas como estradas romanas no tumulto das nossas vidas, pois são elas que nos fazem andar ao ritmo das pessoas civilizadas; com o passo lento e comedido dos polícias, isto apesar de, ao mesmo tempo, podermos estar a trautear os maiores disparates em voz baixa – “Escuta, escuta, os cães afinal sempre ladram”. “Vai-te embora, vai-te embora morte”, “Não me entregues ao casamento das mentes verdadeiras”, e assim por diante. “Foi bem sucedido em termos profissionais... O tio deixou-lhe uma pequena soma de dinheiro” – é assim que o biógrafo continua, e é assim que tem de o fazer, mesmo que de vez em quando se sinta tentado a brincar com todas estas frases. Mesmo assim, há que as dizer.

Transformei-me num determinado tipo de homens, percorrendo o caminho que me foi traçado na vida como alguns percorrem os carreiros existentes nos campos. As botas que uso gastaram-se um pouco mais no lado esquerdo. Quando entro, procedem-se a determinados arranjos. “Cá está o Bernard!” As pessoas pronunciam esta frase de forma tão diferente! Existem muitas salas, muitos Bernards. Havia aquele que era encantador mas fraco; o forte mas arrogante; o brilhante mas inexorável; o simpático mas frio; o descuidado mas também – e era apenas preciso mudar para a outra sala – o aperaltado, o mundano, o demasiado bem vestido. Aquilo que eu representava para mim mesmo era completamente diferente, nada tinha a ver com isto. Sinto-me inclinado para me ver com isto. Sinto-me inclinado para me ver melhor representado frente ao cesto do pão, enquanto tomava o pequeno-almoço com a minha mulher, que, sendo agora casada comigo, deixara de ser a rapariga que usava uma certa rosa sempre que esperava encontrar-se comigo. Tudo isto me dava a sensação de estar vivo, de existir no meio do nevoeiro, mais ou menos como um sapo que se oculta à sombra de uma folha verde. “Passa-me...” dizia eu. Ela respondia “o leite”, ou dizia coisas como “a Mary está a chegar”... – palavras simples para aqueles que herdaram os despojos de todas as eras, mas não quando ditas naquele contexto quotidiano, na maré cheia da vida, quando, à mesa do pequeno-almoço, nos sentíamos completos, inteiros. Músculos, nervos, intestinos, vasos sanguíneos, tudo o que constituía o revestimento e a mola do nosso ser, o zumbido inconsciente do motor, bem assim como o dardo e o chicote da língua, tudo isto funcionava de forma soberba. Abrindo, fechando; fechando, abrindo; comendo, bebendo; por vezes falando – todo o mecanismo parecia expandir-se e contrair-se, semelhante à mola principal de um relógio. Pão torrado e manteiga, café e bacon, o The Times e as cartas – de súbito o telefone tocava com urgência e eu levantava-me de propósito para o atender. Pegava no bucal preto. Repara na facilidade com que a minha mente se ajustava com vista a assimilar a mensagem – podia ser (tem-se sempre destas fantasias) um convite para assumir o comando do império britânico; observava a minha compostura; reparava na vitalidade magnífica com que os átomos da minha atenção se dispersavam, rodeavam o hiato, assimilavam a mensagem, se adaptavam ao novo estado de coisas, e, quando voltava a poisar o auscultador, criavam então um mundo mais rico, forte e complicado, no qual era chamado a desempenhar o papel que me competia sem nunca duvidar de que era capaz de o fazer. Enfiando o chapéu na cabeça, saía para um mundo habitado por multidões de homens e mulheres que também haviam enfiado os chapéus nas cabeças, e, sempre que nos encontrávamos nos comboios e metropolitanos, trocávamos o olhar característico de adversários e camaradas que têm de enfrentar toda a espécie de dificuldades para atingir o mesmo objectivo – ganhar a vida. A vida é agradável. A vida é boa. O simples processo segundo o qual decorre é satisfatório. Pensemos no cidadão comum e saudável. Trata-se de alguém que gosta de comer e dormir.