— Irra com tanta hipótese!..
— Ó filho, o homem lúcido tem que examinar todas as objecções possíveis e de as refutar, antes de se poder dizer seguro da doutrina. E, de mais a mais, isto tudo é em resposta a uma pergunta que você me fez…
— Está bem.
— No campo da adaptação material, dizia eu, há em todo o caso uma outra hipótese. É a da ditadura revolucionária.
— Da ditadura revolucionária como?
— Como eu lhe expliquei, não pode haver adaptação material a uma coisa que não existe, materialmente, ainda. Mas se, por um movimento brusco, se fizer a revolução social, fica implantada já, não a sociedade livre (porque para essa não pode a humanidade ter ainda preparação), mas uma ditadura daqueles que querem implantar a sociedade livre. Mas existe já, ainda que em esboço ou em começo, existe já materialmente qualquer coisa da sociedade livre. Há já portanto uma coisa material, a que a humanidade se adapte. É este o argumento com que as bestas que defendem a «ditadura do proletariado» a defenderiam se fossem capazes de argumentar ou de pensar. O argumento, é claro, não é deles: é meu. Ponho-o, como objecção, a mim mesmo. E, como vou mostar…, é falso.
«Um regímen revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia que o conduz, é materialmente só uma coisa — um regime revolucionário. Ora um regímen revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra, ou, nas verdadeiras palavras, um regímen militar despótico, porque o estado de guerra é imposto à sociedade por uma parte déla — aquela parte que assumiu revolucionariamente o poder. O que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a esse regímen, como a única coisa que ele é materialmente, mediatamente, é um regímen militar despótico, adaptase a um regímen militar despótico. A ideia, que conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram, desapareceu por completo da realidade social, que é ocupada exclusivamente pelo fenómeno guerreiro. De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária — e tanto mais completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar — é uma sociedade guerreira de tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia ser outra coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei acerta com isto; nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações políticas de Roma? O império romano e o seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa? Napoleão e o seu despotismo militar. E você verá o que sai da Revolução Russa… Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da sociedade livre… Também, o que era de esperar de um povo de analfabetos e de místicos?…
Enfím, isto já está fora da conversa… Você percebeu o meu argumento?
— Percebi perfeitamente.
— Você compreende portanto que eu cheguei a esta conclusão: Fim: a sociedade anarquista, a sociedade livre; meio: a passagem, sem transição, da sociedade burguesa para a sociedade livre. Esta passagem seria preparada e tornada possível por uma propaganda intensa, completa, absorvente, de modo a predispor todos os espíritos e enfraquecer todas as resistências. É claro que por «propaganda» não entendo só a pela palavra escrita e falada: entendo tudo, acção indirecta ou directa, quanto pode predispor para a sociedade livre e enfraquecer a resistência à sua vinda. Assim, não tendo quase resistências nenhumas que vencer, a revolução social, quando viesse, seria rápida, fácil, e não teria que estabelecer nenhuma ditadura revolucionária, por não ter contra quem aplicá-la. Se isto não pode ser assim, é que o anarquismo é irrealizável; e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa, como já lhe provei, a sociedade burguesa.
«Ora aí tem você por que e como eu me tornei anarquista, e por que e como rejeitei, como falsas e antinaturais, as outras doutrinas sociais de menor ousadia.
«E pronto… Vamos lá a continuar a minha história.
Fez explodir um fósforo, e acendeu lentamente o charuto. Concentrou-se, e daí a pouco prosseguiu.
— Havia vários outros rapazes com as mesmas opiniões que eu. A maioria era de operários, mas havia um ou outro que o não era; o que todos éramos era pobres, e, que me lembre, não éramos muito estúpidos. A gente tinha uma certa vontade de se instruir, de saber coisas, e ao mesmo tempo uma vontade de propaganda, de espalhar as nossas ideias. Queríamos para nós e para os outros — para a humanidade inteira — uma sociedade nova, livre destes preconceitos todos, que fazem os homens desiguais artificialmente e Ihes impõem inferioridades, sofri-mentos, estreitezas, que a Natureza lhes não tinha imposto! Por mim, o que eu lia confirmava-me nestas opiniões. Em livros libertários baratos — os que havia ao tempo, e eram já bastantes — li quase tudo. Fui a conferências e comicios dos propagandistas do tempo. Cada livro e cada discurso me convencía mais da certeza e da justiça das minhas ideias. O que eu pensava então — repito-lhe, meu amigo — é o que pensó hoje; a única diferença é que então pensava-o só, e hoje penso-o e pratico-o.
— Pois sim; isso, até onde vai, está muito bem. Está muito certo que você se tornasse anarquista assim, e vejo perfeitamente que você era anarquista. Não preciso mais provas disso. O que eu quero saber é como é que daí saiu o banqueiro…, como é que saiu daí sem contradigo… Isto é, mais ou menos já calculo…
— Não, não calcula nada… Eu sei o que você quer dizer… Você baseia-se nos argumentos que me acaba de ouvir, e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso, como lhe disse, só defensável e justa a sociedade burguesa — não é?
— Sim, calculei que fosse mais ou menos isso…
— Mas como o podia ser, se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido que sou anarquista, que não só o fui mas o continuo sendo? Se eu me tivesse tornado banqueiro e comerciante pela razão que você julga, eu não era anarquista, era burguês.
— Sim, você tem razão… Mas então com os diabos…? Vá lá, vá dizendo…
— Como lhe disse, eu era (fui sempre) mais ou menos lúcido, e também um homem de acção. Essas são qualidades naturais; não mas puseram no berço (se é que eu tive berço), eu é que as levei para lá. Pois bem. Sendo anarquista, eu achava insuportável ser anarquista só passivamente, só para ir ouvir discursos e falar nisso com os amigos. Não: era preciso fazer qualquer coisa! Era preciso trabalhar e lutar pela causa dos oprimidos e das vítimas das convenções sociais! Decidi meter ombros a isso, conforme pudesse. Pus-me a pensar como é que eu poderia ser útil à causa libertária. Pus-me a traçar o meu plano e acção.
«O que quer o anarquista? A liberdade — a liberdade para si e para os outros, para a humanidade inteira. Quer estar livre da influência ou da pressáo das ficções sociais; quer ser livre tal qual nasceu e apareceu no mundo, que é como em justiça deve ser; e quer essa liberdade para si e para todos os mais. Nem todos podem ser iguais perante a Natureza: uns nascem altos, outros baixos; uns fortes, outros fracos; uns mais inteligentes, outros menos… Mas todos podem ser iguais daí em diante; só as ficções sociais o evitam. Essas ficções sociais é que era preciso destruir.
«Era preciso destruí-las… Mas não me escapou uma coisa, era preciso destruí-las mas em proveito da liberdade, e tendo sempre em vista a criação da sociedade livre. Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar liberdade, ou preparar o caminho da liberdade, como para estabelecer outras ficções sociais diferentes, igualmente más porque igualmente fícções. Aqui é que era preciso cuidado. Era preciso acertar com um processo de acção, qualquer que fosse a sua violência ou a sua não-violência (porque contra as injustiças sociais tudo era legítimo), pelo qual se contribuísse para destruir as fícções sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura; criando já mesmo, caso fosse possível, alguma coisa da liberdade futura.