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CAPÍTULO XXIV

A assinatura do artista

Atentai, falo-vos de um mistério; não dormiremos todos, mas seremos todos mudados.

CORÍNTIOS, 15:51

O universo parece… ter sido determinado e ordenado de acordo com número, pela antevisão e pela mente do criador de todas as coisas; pois o padrão foi fixado, como um esboço preliminar, pelo domínio do número preexistente na mente do Deus criador do mundo.

NICOMACO DE GERASA — aritmética, 6 (cerca de 100 d.C.)

Ellie correu pela escada do lar de idosos acima e, na varanda recém-pintada de verde, assinalada a intervalos regulares por cadeiras de balanço vazias, viu John Staughton — curvado, imóvel, de braços caídos como pesos mortos. Segurava na mão direita um saco de compras no qual ela vislumbrou uma touca de banho transparente, um estojo de maquilagem florido e dois chinelos de quarto enfeitados com pompons cor-de-rosa.

— Ela morreu — disse Staughton, de olhos fixos. — Não entres — pediu. — Não a vejas. Ela detestaria que a visses assim. Sabes quanto orgulho tinha no seu aspecto. De qualquer modo, ela não está ali.

Quase maquinalmente, levada pela longa prática e por ressentimentos ainda não abandonados, sentiu-se tentada a virar-lhe as costas e a entrar, apesar de tudo. Estava preparada, mesmo agora, para o desafiar por uma questão de princípio? Mas qual era exatamente o princípio? Pela expressão destroçada do seu rosto, não havia dúvidas quanto à autenticidade do seu remorso. Ele amara a mãe dela. Talvez, pensou, a tenha amado mais do que eu — avassalou-a uma onda de auto-recriminação. A mãe fora tão débil durante tanto tempo que Ellie imaginara muitas vezes como reagiria quando o momento chegasse. Recordou como a mãe era bonita no retrato que Staughton lhe enviara e, de súbito, mal-grado os ensaios que fizera para aquele momento, foi sacudida por soluços.

Surpreendido com a sua angústia, Staughton mexeu-se para a confortar. Mas ela levantou a mão e, com esforço evidente, recuperou o autodomínio. Nem mesmo numa altura daquelas era capaz de o abraçar. Eram desconhecidos, estranhos tenuemente ligados por um cadáver. Mas ela errara — sabia-o no âmago do seu ser — ao culpar Staughton pela morte do seu pai.

— Tenho uma coisa para ti — disse ele, a remexer no saco das compras.

Algum do conteúdo circulou entre o fundo e a parte de cima, e ela viu, além do que já vira, uma carteira de imitação de cabedal e uma caixa de plástico de guardar dentaduras. Teve de desviar o olhar. Por fim, ele endireitou-se e apresentou um sobrescrito que o tempo envelhecera.

Tinha escritas as palavras «Para a Eleanor». Ao reconhecer a caligrafia da mãe, Ellie fez um gesto para lhe pegar. Mas Staughton recuou um passo, assustado, de sobrescrito levantado à frente da cara, como se ela tivesse feito menção de lhe bater.

— Espera — pediu. — Espera. Sei que nunca nos entendemos. Mas faz-me este único favor: não leias esta carta antes desta noite! Está bem?

O desgosto fazia-o parecer dez anos mais velho.

— Por quê?

— A tua pergunta favorita! Faz-me apenas esta gentileza. É pedir demasiado?

— Tem razão. Não é pedir demasiado. Desculpe.

Ele olhou-a francamente nos olhos e disse:

— Seja o que for que te tenha acontecido naquela Máquina, talvez te tenha mudado.

— Desejo que sim, John.

Telefonou a Joss e pediu-lhe que se encarregasse do serviço fúnebre.

— Não preciso de lhe dizer que não sou religiosa. Mas havia ocasiões em que a minha mãe era. Você é a única pessoa que eu gostaria que o fizesse e tenho a certeza de que o meu padrasto aprovará.

Joss prometeu-lhe que chegaria no primeiro avião.

No seu quarto de hotel, depois de jantar cedo, Ellie apalpou o sobrescrito, acariciou todas as suas rugas, todos os pontos desgastados da superfície. Era velho. A mãe devia tê-lo escrito havia anos e trazido nalgum compartimento da bolsa, debatendo consigo mesma se deveria entregá-lo ou não à filha. Não parecia ter sido fechado de novo, recentemente, e Ellie perguntou a si mesma se Staughton o lera. Parte dela ansiava por abri-lo, mas outra parte hesitava, com uma espécie de ressentimento. Ficou muito tempo sentada na mofenta cadeira de braços, a pensar, com os joelhos dobrados e levantados para o queixo.

Soou um besouro e o carreto não completamente silencioso do seu telefax despertou. Estava ligado ao computador de Argus. Embora lhe recordasse tempos antigos, agora não havia verdadeiramente nenhuma urgência.

O que quer que fosse que o computador encontrasse, não fugiria; não se poria com a rotação da Terra. Se havia uma mensagem escondida dentro de pi, esperaria eternamente por ela.

Voltou a examinar o sobrescrito, mas o eco do besouro intrometeu-se. Se havia conteúdo dentro de um número transcendental, só podia ter sido introduzido na geometria do universo logo no princípio. Este seu novo projeto era de teologia experimental. Mas o mesmo era toda a ciência, pensou.

«ATENÇÃO», imprimiu o computador no écran do telefax.

Ellie pensou no pai… bem, no simulacro do pai… Pensou nos zeladores com a sua rede de túneis através da Galáxia. Tinham testemunhado, e talvez influenciado, a origem e o desenvolvimento da vida em milhões de mundos. Estavam a construir galáxias, a isolar setores do universo. Podiam controlar pelo menos uma espécie de viagem no tempo limitada. Eram deuses para além do imaginário piedoso de quase todas as religiões — pelo menos de todas as religiões ocidentais. Mas até eles tinham as suas limitações. Não tinham introduzido a mensagem no número transcendental e nem sequer sabiam lê-la. Os construtores de túneis e os inscritores de pi eram quaisquer outros. Já não viviam aqui. Não tinham deixado nenhum endereço. Ellie supôs que, quando os construtores de túneis partiram, aqueles que eventualmente viriam a ser os zeladores se tinham tornado crianças abandonadas. Como ela, como ela.

Pensou na hipótese de Eda, de que os túneis eram buracos de vermes, distribuídos a intervalos convenientes à volta de inúmeras estrelas nesta e noutras galáxias. Pareciam buracos negros, mas tinham propriedades e origens diferentes. Não eram exatamente isentos de massa, porque ela vira-os deixar esteiras gravitacionais nos resíduos em órbita no sistema de Vega. E através deles passavam e ligavam a Galáxia seres e naves de muitas espécies.

Buracos de vermes. No calão revelador da física teórica, o universo era a sua maçã e alguém abrira túneis através dela, enchendo o interior de caminhos que se entrecruzavam no miolo. Para um bacilo que vivia na superfície era um milagre. Mas um ser que se encontrasse fora da maçã poderia sentir-se menos impressionado. Dessa perspectiva, os construtores de túneis eram apenas uma contrariedade. Mas se os construtores de túneis são vermes, pensou, quem somos nós?

O computador de Argus entrara profundamente em pi, mais profundamente do que alguma entidade da Terra, humano ou máquina, jamais penetrara, embora não tanto como os zeladores se tinham aventurado a fazer. Era demasiado cedo, pensou, para aquilo agora ser a Mensagem, havia tanto tempo por decriptografar acerca da qual Theodore Arroway lhe falara na praia daquele mar que não vinha nos mapas. Talvez fosse apenas uma aceleração, uma antestréia de futuras atrações, um encorajamento para prosseguimento da exploração, um símbolo para que os humanos não desanimassem. Fosse o que fosse, não poderia ser a mensagem com que os zeladores se debatiam. Talvez houvesse mensagens fáceis e mensagens difíceis encerradas nos vários números transcendentais e o computador de Argus tivesse descoberto a mais fácil. Com ajuda.

Na estação, ela aprendera uma espécie de humildade, fora-lhe lembrado quanto era pouco o que os habitantes da Terra realmente sabiam. Podia haver, pensou, tantas categorias de seres mais avançados do que os humanos quantas há entre nós e as formigas, ou talvez mesmo entre nós e os vírus. Mas isso não a deprimira. Ao invés de uma resignação descoroçoada, despertara nela um sentimento crescente de maravilhamento.