— Não me chame de mãe! — escarneceu Kitiara. — Não é filho da minha carne! O meu filho não é covarde! Eu atravessei aquele bosque pavoroso. E aqui está você, pensando em virar as costas e fugir!
— Não estou! — replicou Steel ainda mais furioso pelo fato de ter pensado em fugir. — Eu...
Mas a visão se desvaneceu, mergulhando nas trevas.
Rangendo os dentes, com a mão roçando o punho da espada, Steel adiantou-se e caminhou resolutamente na direção da clareira de Shoikan. Esquecera-se de Palin, esquecera-se mesmo que tal mago existia. Agora iria se desenrolar uma batalha, entre ele e o bosque. Não ouviu os passos apressados que ressoavam atrás de si. Quando sentiu uma mão tocar-lhe o braço, deu um pulo, sobressaltado, e virando-se desembainhou a espada. Arquejando, ao ver o olhar tresloucado de Steel, o mago retrocedeu.
— Steel, sou eu...
A luz do Bastão de Magius redobrou de brilho ao incidir no rosto do jovem mago. Steel soltou um profundo suspiro de alívio, do qual logo se envergonhou.
— Majere, onde se meteu?
— Tentando te alcançar, Montante Luzente! — respondeu Palin. — Correu tão depressa... Não é só você, mas ambos temos que atravessar aquele maldito bosque... se conseguirmos.
As vozes dos mortos-vivos chegaram-lhes aos ouvidos.
— Sangue quente, doce carne, venham até nós... venham.
Palin estava exangue. A mão, escorregadia de suor, enclavinhou-se no bastão até as articulações ficarem esbranquiçados.
— Que Paladino nos valha! — exclamou, segurando com força no braço de Steel. — Olhe! Que os deuses nos acudam! Vêm direitos para nós!
Steel virou-se para trás, de espada erguida, mas baixou-a.
— Que está fazendo? — Palin procurava com frenesi os componentes de encantar. — Temos que lutar...
— O meu pai não nos fará mal — disse Steel com voz doce. Dois guias, dissera Lady Crysania.
Das sombras do bosque emergiu um cavaleiro envergando uma armadura que, ao luar, brilhava como prata. Esta estava decorada com a rosa, a coroa e o pica-peixe. Tratava-se de uma armadura antiga, que remontava quase à época do Cataclismo. O cavaleiro não possuía espada, pois dera-a ao filho.
Aproximando-se, postou-se ao lado de Steel.
— Jurou, pela tua honra, atravessar aquele lugar amaldiçoado? — inquiriu Sturm Montante Luzente.
— Assim foi, meu Pai — replicou Steel, com voz calma. A mão que segurava a espada também se mostrava serena.
Os olhos de Sturm, atormentados, tristes, cheios de amor, orgulhosos, pareciam avaliar a grandeza do homem vivo. Solene, acenou uma vez com a cabeça e disse:
— Est Sularus Oth Mithas.
Inspirando fundo, Steel replicou:
— Compreendo, Pai.
Sturm sorriu. Erguendo a mão, apontou para a garganta do filho. Depois, deu meia volta e afastou-se, mas sem mergulhar nas sombras; estas é que pareciam afastar-se dele. Desapareceu envolto num clarão de luar prateado.
— Sabe o que ele queria dizer? — perguntou Palin em tom abafado. Steel passou a mão por baixo da armadura, segurou numa jóia que usava ao pescoço e puxou-a. A jóia era de concepção e fabricação elfa — um testemunho de amor muito freqüente entre os elfos apaixonados. Foi o presente de Alhana a Sturm: a prova do amor eterno. Fora a dádiva de Sturm ao filho. A jóia emitiu um clarão vivo e frio — um frio imaculado, penetrante como uma agulha de gelo. Ou como o gume penetrante de uma espada.
— A minha honra é a minha vida. Não envergonharei a minha mãe. Não desiludirei o meu pai. Vamos agora penetrar naquele bosque — declarou Steel Montante Luzente.
19
Tas se aborrece.
A conversa com o espectro.
A poderosa magia kender.
Tasslehoff Pés Ligeiros deu um suspiro. Deixando o corpo pequenino afundar-se numa cadeira, olhou em volta, voltou a suspirar e anunciou:
— Sinto-me aborrecido.
Quem vivesse há muito tempo em Ansalon, ao ouvir estas temíveis palavras fugiria correndo. Se quiserem, aproximem-se de um guerreiro calejado e perguntem:
— Diga-me, senhor, se tivesse que permanecer trancado numa sala, com quem preferia ficar — com um exército de ogros, um regimento de trolls[3], uma brigada de Draconianos, um dragão vermelho... ou um kender enfastiado?
É certo e sabido que o guerreiro optará sempre pelos ogros, os trolls, os draconianos e o dragão vermelho. E dirá, tal como todos que encontrarem, que não há nada mais perigoso em Krynn do que um kender enfastiado.
Usha, que infelizmente nunca vivera entre os kender, desconhecia o fato.
Os dois haviam passado a primeira noite da sua chegada, o dia seguinte, grande parte da segunda noite cochilando, sob o efeito do encantamento que Dalamar e Jenna haviam lançado sobre eles. Tas foi o primeiro a acordar e, sendo ele um kender, sofreu as torturas do inferno para não acordar Usha. Chegou até mesmo ao ponto de se dominar, o que lhe exigiu um esforço heróico de vontade — no sentido de não esquadrinhar os alforjes dela, um dos quais a jovem utilizava como almofada.
Efetuou uma exploração pela sala, cheia de objetos interessantes que Raistlin recolhera por todo o território de Krynn. Dalamar enriquecera a coleção e Tas pôs-se a admirar as delicadas estátuas de madeira esculpidas pelos elfos de Wilder, as conchas e as esponjas provenientes do Mar de Sangue de Istar, as caixas de porcelana decoradas com pinturas ornamentais de pavões provenientes do Norte de Ergoth, os enormes baús de madeira de cedro, produzidos pelos duendes de Thorbardin e vários outros objetos de interesse.
Qualquer um deles (à exceção dos baús de cedro) podia ter acabado nos bolsos de Tas e, na realidade, alguns foram parar lá por acaso, embora voltassem de imediato para os respectivos lugares de novo. Tornava-se óbvio que a sala fora concebida à prova de kenders.
— Santíssimos deuses! — exclamou Tas quando um ouriço-do-mar matizado de carmim saltou da algibeira do kender e voltou para a respectiva prateleira. — Viu aquilo?
— Vi o quê? — perguntou Usha, sonolenta.
— Ora, sempre que uma daquelas coisas pula para a minha algibeira, volta a pular para o lugar dela! Não é maravilhoso? Venha ver!
Usha obedeceu, sem mostrar grande interesse.
— Onde está Lorde Dalamar e aquela mulher... a Jenna? Onde foram?
Tas encolheu os ombros.
— As pessoas andam sempre desaparecendo por estas bandas. — respondeu. — Vão voltar. — Depois, a sua atenção foi atraída pelas fechaduras dos baús de cedro.
— Não quero que voltem! — disse Usha, com irritação. — Odeio este lugar! Não gosto de Dalamar. Quero ir embora. E é para já. Anda, vamos aproveitar enquanto não chegam.
Juntou as suas coisas, dirigiu-se para a porta, pegou no batente e puxou.
A porta não se mexeu.
Usha bateu repetidamente, puxou, até deu pontapés.
Inútil.
Olhando de relance, Tas observou, solícito:
— Cá para mim, está trancada.
— Ora essa, porquê? — retorquiu Usha, desorientada. — Tem certeza?
Tas aquiesceu com a cabeça, dado que, para o kender, este tipo de ocorrência não era inédito nem fora do comum.
— As pessoas andam sempre me trancando do lado de dentro, do lado de fora, ou ambos — disse. — Com o tempo nos habituamos.
As fechaduras dos baús de cedro também se revelaram imunes às remexidas do kender. O buraco onde devia ser introduzida a chave, saltitava sem descanso de um lado para o outro, de uma forma bastante inconveniente. Embora nos primeiros dez minutos estas manobras fossem consideradas altamente divertidas. Tas, que começava a sentir-se farto de perseguir as fechaduras por aqui e por ali, proferiu de novo a frase que faria muita gente correr, aos gritos, à procura de uma saída.